O cliente tem sempre razão!

O cineasta e escritor Newton Cannito (Foto: Reprodução)

Todos sabemos da crise de público do audiovisual brasileiro. Mas, em momentos de crise, temos grandes oportunidades para mudar tudo.

O que vou propor aqui é começarmos uma discussão sobre novos mecanismos de seleção de projetos que, ao invés de ter jurados e pareceres, envolva o próprio espectador, fazendo democracia direta e efetivando orçamento participativo. É ousado, mas mostrarei que é perfeitamente possível. E pode ajudar a escolher filmes que atendam mais o interesse público (o interesse do público) e melhore a imagem do audiovisual brasileiro junto à população.

Mas antes vamos pensar um pouco mais sobre essa crise de público.

Claro que existem várias questões estruturais envolvidas, que vão além dos próprios filmes. No cinema a crise é até mesmo dos filmes americanos. Mas é muito fácil simplesmente botar a culpa na pandemia ou no governo anterior.

Muito mais difícil é olhar para nosso umbigo. Será que os filmes e séries que fazemos atendem a demanda de nosso público? Será que não estamos muito focados em ensinar o público e menos em ouvi-lo? O fato difícil de encarar é que os filmes brasileiros não tem mais engajamento do povo brasileiro. Esse debate ainda é pouco realizado. Temos que ter a coragem de debater nossas obras ou continuaremos apegados a nossa irrelevância, tentando fingir sucesso, enganando apenas a nós mesmos.

Isso, obviamente, não quer dizer que não tenhamos artistas de talento. Mas quer dizer que não estamos fazendo filmes que conquistam o público. Seja um público mais amplo, seja um público segmentado. Seja em cinema, seja em séries. O audiovisual brasileiro está perdendo rapidamente a relevância. Para não dizer que já perdeu. A pergunta é: ainda dá tempo de recuperar? Tenho certeza que sim, mas é necessário mudanças urgentes em nossos paradigmas de escolha de projetos.

É evidente que boa parte do povo brasileiro tem rejeitado o cinema brasileiro. Basta ver as redes sociais. Acusar o povo de ser ignorante (ou "de direita conservadora") não resolve o problema. Eu, pessoalmente, não acredito nessa hipótese do público ser conservador. Basta lembrar que, até recentemente, esse mesmo público lotava a sala para ver Paulo Gustavo vestido de mulher em piadas politicamente incorretas. Os filmes de Paulo Gustavo são conservadores? Obviamente que não. Mas, somos obrigados a dizer, já não seriam feitos hoje, nesse ambiente controlado onde o "bom gosto"  impede piadas mais ousadas que realmente agradam o público.

Mas, mesmo se o público não for do jeito que eu gostaria que fosse, acusá-lo não resolverá o problema. O cliente sempre tem razão. Basta dizer que utilizamos verba pública para fazer nossos filmes. Eu sei que o grosso de nosso financiamento (Fundo Setorial do Audiovisual) vem de receita da própria atividade. Mas ainda é uma política pública, afinal é baseada em uma Lei. Sofismas não respondem a verdadeira questão, apenas nos afastam da necessária autocrítica. O fato é que somos financiados por política pública e, por isso, temos  que atender o público. Ou vamos optar mesmo em fazer filmes apenas para a bolha de Festivais que simula sucessos inexistentes? Você já imaginou um SUS onde as pessoas não tem interesse em ir? Não se sustenta. Ou conquistamos o público ou seremos destruídos. E seremos destruídos de forma justa. Nem reclamar poderemos.

Além disso, eu não sou do tipo que culpa o público pelo meu fracasso. Não resolve nada. Não posso trocar o público. Nós, artistas, temos que aprender a dialogar com ele. Se você quer ser progressista, acho ótimo. Eu também sou. Mas temos que fazer filmes que dialoguem com todos. Ou queremos continuar como hoje, com filmes que pregam apenas para a pequena bolha de convertidos? Alguém realmente está satisfeito com esse auto engano coletivo?

Se quisermos conquistar o público temos que nos esforçar para sair da bolha. Temos que voltar urgente a fazer Histórias para unir o Brasil.

Dizer que a crise de público está acontecendo com o cinema americano é simplesmente pensar pequeno. Se o cinema americano está em crise, devemos pensar nisso como uma oportunidade de conquistar o mercado interno e externo.  E não usar isso para justificar nosso fracasso. E sabemos que muitas cinematografias menores têm alcançado sucesso maior que o nosso. Basta citar Argentina, Espanha, Israel e Coreia. Porque o Brasil não?

Eu acredito demais no audiovisual brasileiro e em nossos artistas. Temos que voltar a pensar grande e servir ao nosso povo, com filmes que eles tenham vontade de assistir e os transformem. Como sempre fizemos.

Modelos de seleção em Democracia Direta

Em momentos de crise podemos e devemos reavaliar os modelos de seleção.

O modelo que usamos foi criado há 20 anos, baseado em editais com juris de seleção. Às vezes são júris indicados pela própria classe mas, em muitos casos, está sendo escolhido por pareceristas indicados pelo próprio poder público. Será que essa é a única solução?

Primeiro é necessário dizer que esse modelo está com claros sinais de esgotamento. Aumentou muito os participantes e é cada vez mais difícil montar juris qualificados.

Eu fui um tempo do Conselho da FAPESP, fundo de amparo à Ciência. Lá tinha um princípio básico: você é avaliado por alguém com mais currículo que você. Sempre. Isso parece óbvio, mas não tem acontecido em audiovisual. Além disso, quem acompanha os pareceres, sabe que estão cada vez menores e com menos análise. Alguns casos, nem parecer entregam mais. O trabalho de seleção aumentou muito e os jurados são mal remunerados, inviabilizando a qualidade da análise. Em várias cidades e estados os pareceres estão sendo questionados e alguns editais já começaram a ser cancelados.

O modelo está, obviamente, em crise. Porque não ser radicalmente democratico e deixar o próprio povo decidir os filmes que ele quer ver?

Uma época eu participei de orçamentos participativos. Era o povo decidindo onde investir a grana da prefeitura. Decidiam onde asfaltar, onde fazer uma ponte. Eram decisões super complexas. Em audiovisual isso é muito mais possível e fácil fazer isso.

Hoje em dia, com as redes sociais, podemos fazer mega campanhas onde os próprios espectadores assistem Pitchings de Ideias e decidem os filmes que querem ver? Utópico? Ou é apenas falta de ousadia?

Porque não?

E claro que seria necessário ter antes alguma análise técnica do projeto, verificando o óbvio: orçamento, condições de produção, etc…  Isso seria uma pré qualificação técnica que um popular não sabe fazer. Isso seria uma pré qualificação para participar do júri popular.

Mas passado essa etapa técnica podemos fazer grandes feiras transmitidas ao vivo (realities show de histórias?) onde autores apresentam suas ideias para o povo.

Isso daria muita audiência? Eu aposto que se bem lançado e produzido sim. Mas, qualquer audiência que der, será mais democrático do que o modelo atual.

Se você achar utópico demais podemos inventar outras soluções intermediárias. Um exemplo: fazer júris populares sorteando pessoas do povo. Inviável? Porque?  Você acha que o público, ao ver uma sinopse ou um trailler, não consegue decidir que filme ele quer ver? O público faz isso o tempo todo, ao escolher um filme no streaming. Estamos apenas ouvindo o público antes para reduzir o risco de erro no investimento.

Hoje, toda decisão dos projetos é feita por júris internos da classe e/ou por tecnocratas. Em 20 anos disso obviamente o campo audiovisual acabou virando uma bolha que decide a partir dos próprios valores. E tem valores muito coesos e parecidos. Como todo grupo que se auto defende , a  classe audiovisual é o reino do consenso.  Sabemos da boa vontade de todos nós em fazer o melhor, mas pode ser a hora de dividir esse poder de escolha com o povo.  A diversidade do júri, que não será apenas pessoas da classe artística que compartilham  da mesma visão de mundo, permitirá debates interessantíssimos que podem gerar diálogos que voltem a unir o Brasil.

Muita gente pensa que a classe escolher é um modelo democrático. Mas é apenas uma democracia corporativa, onde a própria classe escolhe o que quer fazer. Quando surgiu, 30 anos atrás, durante a Nova República, isso foi um avanço. Mas chegou a hora de um novo avanço: a democracia direta!!

Eu não me canso de repetir. Na área da cultura, nós ainda acreditamos que a política pública é feita para os artistas. Não para o público.  Nos focamos na área meio (a classe artística) e não na área fim: o público.

Basta ver que 90% dos debates sobre escolha dos filmes é quem é o artista que faz o filme. E não é mais qual é o filme que será feito. A política pensa mais no realizador do que na obra.

E uma política pública auto centrada.

E como se o Ministério da Saúde fizesse política para os médicos e não para as pessoas que precisam de tratamento de saúde.

Imagina a situação.  "Eu sei que o povo não vai mais no SUS. Eu sei que ninguem frequenta nossos hospitais sustentados com dinheiro público. Mas a política de saúde brasileira é um sucesso. Os médicos estão adorando a política de saúde, sabes? Se encontram em Festivais, que o próprio ministério financia, e premiam a si mesmos! Um sucesso!".

Desculpem a satira mas, às vezes, é necessário para explicitar o absurdo que vivemos.

E repito: não é questão de culpar nenhum de nós. Criamos isso juntos, no passado. Era a melhor solução. Apenas está encerrando esse ciclo e precisamos pensar em novas soluções.

É arriscado? Bem, arriscar é melhor que não mexer em nada e continuar repetindo a esgotada fórmula atual de pareceristas que nos trouxe até aqui. E, no mínimo, será um debate maravilhoso para fazer com a sociedade brasileira. Você já imaginou o debate público? Aposto que nunca o cinema brasileiro teve tanta repercussão quanto terá em um debate público onde o proprio povo escolhe onde gastar os bilhões da cultura. Isso em si, será a campanha de pré lançamento dos filmes produzidos, conquistando engajamento desde a etapa de desenvolvimento.

Além disso, deixar o povo escolher vai ser bom para a imagem do Audiovisual Brasileiro, pois  neutralizará  a acusação de que a produção cultural brasileira é aparelhada e corporativa. Ao deixar o povo decidir, iremos neutralizar essa acusação e melhorar a imagem do cinema brasileiro. E, por fim, as pessoas que escolheram o filme selecionado tem uma boa chance de ir assisti-lo quando estiver pronto. Com certeza, teremos mais público do que hoje. É óbvio.

Mas se você achar muito arriscado, ok.  Faça apenas 30% dos recursos dos editais públicos (seja Fundo Setorial, seja PG, o u Aldir Blanc)  para esse mecanismo de democracia direta. Deixe o resto  no modelo atual com juris. Em 2 anos voltamos a avaliar os resultados comparativos.

Mas o fato é que precisamos urgente tomar medidas radicais para voltar a fazer filmes que conquistem o público.

Essa é só uma ideia. Não precisa ser a única

Mas se alguém tiver novas ideias, chegou a hora de botar na mesa. É a hora de inovar para salvar nosso audiovisual da irrelevância.

6 COMENTÁRIOS

  1. Não sei se é a solução proposta resolveria o problema, mas com certeza é uma discussão bastante pertinente e corajosa que precisa ser feita. Parabéns pelo texto!

  2. Análise pertinente da nossa bolha audiovisual e uma proposta muito interessante e inovadora, Canito! Teríamos que detalhar melhor como seria a escolha e o funcionamento desse júri popular, mas concordo que esse processo poderia gerar engajamento com os projetos desde o início. Temos que tentar coisas novas, dar uma chacoalhada no sistema.

  3. VALE ESTE O diagnóstico do Newton é muito bom, muito acertado, mas a idea de "democracia direta" não tem pé nem cabeça. Nem na seleção brasileira isso dá certo. Mas falando sério, acho que a ideia segue sendo autocentrada porque imagina multidões assistindo (de graça?) as infindáveis sessões de pitching que se tornariam verdadeiros shows em si mesmas. Acrescento que nem sempre o cliente tem razão, se você fizer sempre o que o cliente espera que você faça, como o cinema (no caso) avançará. Fazer cinema, escrever histórias requer técnica, experiência e conhecimento. Contar meramente uma históriaem 5 ou dez minutos está longe de permitir que se "veja" como será o filme, sem conhecimento. Até mesmo ler um roteiro e "ver" o filme a partir dele não é tarefa para leigos. Ao estilo do que se faz hoje em dia, a proposta do Newton é simples, mas enganosa e ineficiente. Imagine se para escolher um cirurgião, um hospital consultasse seus pacientes? Essa é uma postura que é atira o conhecimento no lixo, faz tábua rasa de tudo. É fato que as soluções atuais, corporativas ou não, envolvem muitos limites. Mas a saída não é por aí. Há que se pensar mais e com método, estabelecer uma política cinematográfica e não obedecer a um impulso sem base em práticas do cinema mundial. Até mesmo os screenings estão sujeitos a graves enganos.

    • Saudades amigo. Bom conversr com voce. E arriscada. Mas, como eu disse, voce tem outroa ideia? Ou acha que atualmente esta otimo? Bem. Como é nova. Eu sugeri so 30% do recurso para isso. Podemos negociar para ser 15% kk Mas nao tem porque todo recurso usar o mesmo metodo de avaliação.Temos que arriscar. Mas otima conversa.

  4. Cannito, meu querido, há quanto tempo! Sugestão excelente! Agora, não deixe somente aqui no texto não! Vamos levar isso adiante em vários debates. Faça chegar ao Ministério da Cultura, por exemplo, com a nossa amiga Ministra Margareth Menezes. Tenho certeza que uma luz no fim do túnel surgirá para renovar o vigor do audiovisual brasileiro. Parabéns pelo texto e pela coragem de expor suas idéias aqui de forma tão despojada. Um grande abraço!

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