Primeiro longa-metragem do Tocantins a participar do Festival de Cinema de Gramado e único dirigido por uma mulher a entrar na competição deste ano, “O Barulho da Noite”, de Eva Pereira, foi exibido no evento na noite da última terça-feira, dia 15 de agosto. Pereira assina a direção e o roteiro do filme. A direção de fotografia é de Fabrício Tadeu (“Alemão 2”, “Aquarius”) e a produção é da MZN Filmes, de Márcio e Diego Mazaron, e Cunhã Porã Filmes, em coprodução com a Bananeira Filmes, de Vânia Catani, e Canal Brasil. A distribuição é da Lira Filmes e o lançamento nos cinemas está previsto para 2024.
Ambientada em um lugar remoto, no sertão, a história se apresenta a partir da relação delicada das irmãs Maria Luiza, de sete anos, e Ritinha, de cinco, interpretadas por Alícia Santana e Anna Alice Dias, com Agenor (Marcos Palmeira), seu dedicado e afetuoso pai. Castigada pelas lembranças e traumas da infância e sobrecarregada com as tarefas que lhe cabem, Sônia (Emanuelle Araujo) vive à flor da pele. A fragilidade daquela estrutura familiar é profundamente abalada com a chegada de Athayde (Patrick Sampaio), suposto sobrinho de Agenor que vem para ajudar na lavoura. Agricultor e folião do Divino Espírito Santo, Agenor parte em viagem para cumprir seus deveres religiosos na Festa do Divino, deixando sua mulher e filhas aos cuidados do intruso.
Ao tratar de temas delicados e retratar o cotidiano rural do Brasil profundo, “O Barulho da Noite” revela uma história dramática contada por não ditos, pelo olhar da menina que se cala e se encolhe pela dor silenciada e pelo pedido mudo de socorro, nunca atendido. Fala sobre mulheres que sofrem, todos os dias, com o machismo em suas diferentes apresentações, em suas consequências mais graves e profundas, que acabam passando de geração em geração. Assista ao teaser:
“Esse filme me levou a um processo de imersão na realidade que me tirou o sono e a vida por 20 anos, entre os sete de pesquisa. Não entendia, até então, que minha arte se tornaria um instrumento de cura interior. Não conseguia lidar com o que vinha pra mim ao pesquisar sobre mulheres que viveram coisas parecidas com a Sônia. Nesse processo, eu queria justiça, e não encontrava. Quando entendi o que tem por trás dessas histórias, doeu muito em mim. O roteiro final é imensamente mais suave do que as histórias reais”, disse a diretora e roteirista, Eva Pereira, em debate realizado nesta quarta, 16.
“Esse filme me obrigou a revisitar raízes, olhar as mulheres em torno de mim. É um universo que extrapola classes sociais. E eu queria abraçar cada uma dessas mulheres. Muita gente se pergunta o que paralisa essas mulheres, por que elas não reagem. Porque elas não tem amparo. Quando denunciam, são julgadas por todos. Foi um filme desafiador, que me curou. Tem muito mais de mim e do meu universo nesse filme do que eu gostaria”, revelou Eva, que espera que o filme provoque e cause incômodo nos espectadores: “Não quero que ninguém ache o filme bonito. Quero que incomode mesmo”.
No papel da protagonista, a atriz Emanuelle Araújo concorda: “O incômodo que o filme causa é importante e necessário porque torna o problema visível. Queríamos contar uma história bonita, da mãe que defende a filha de situações de abuso, mas muitas vezes essa história não existe. O que existe são mulheres sozinhas que, se forem enfrentar, vai morrer todo mundo. A passividade da personagem é uma forma de defesa. Não é só a história desse filme, é a história do Brasil. São histórias muitas vezes escondidas. Espero que esse filme faça a gente olhar para a realidade como ela é, e contribuir com a visibilidade de situações que acontecem o tempo todo, inclusive a passividade e a banalização do abuso”.
Muito do que acontece com os personagens não é dito, e sim sugerido. “Sempre tivemos essa ideia do filme não ser explícito. O tempo todo vamos pela perspectiva da menina, que é a forca narrativa do filme. A sabedoria da inocência dela é o que traz as suas reações”, pontuou André Sampaio, montador do longa.
Por fim, Vânia Catani, coprodutora, destacou o fato de que ela e Eva vieram de lugares geográficos e econômicos similares, e que no início do projeto, não viam um horizonte fácil para percorrerem. A situação começou a mudar com as cotas regionais do FSA, para as quais a diretora aplicou e foi selecionada para receber o aporte financeiro. “Eva me convidou para ajudar a montar a equipe e coordenar a produção. Até aquele momento, eram poucos os filmes dirigidos por mulheres – as que dirigiam eram em sua maioria mulheres brancas, de classes mais altas. A Eva foi pisando num terreno complicado, mas teve valentia e coragem para dar a cara a tapa e meter a mão nessa história”, declarou.