A política de outorgas de radiodifusão no governo Bolsonaro

(Foto: Divulgação Rede Minas)

De forma contrária às previsões apocalípticas, a radiodifusão tem se mostrado resistente. Há vários exemplos: o tempo médio diário dedicado ao rádio e à televisão, no Brasil, ainda é alto; as principais emissoras superam largamente serviços concorrentes em termos de alcance e audiência; e avanços importantes, como a TV 3.0, estão em debate. [1]

Octavio Penna Pieranti é professor do Programa de Pós-Graduação em Mídia e Tecnologia da Universidade Estadual Paulista "Júlio de Mesquita Filho" (PPGMiT/Unesp) e servidor público federal. Autor de livros e artigos acadêmicos sobre políticas públicas para as comunicações e a regulação desse setor.

Outro elemento é o interesse dos agentes em começar a prestar esses serviços ou expandir sua atuação. Para isso, o Estado desempenha papel fundamental, já que dele depende a criação de oportunidades para novas emissoras nos três sistemas constitucionais (público, privado e estatal).

Neste artigo analiso a política de outorgas de radiodifusão no governo Bolsonaro, a partir de uma leitura diária, durante quatro anos, dos atos publicados nas edições regulares do Diário Oficial da União. Montei base de dados e dela excluí atos relativos à migração AM/FM e portarias de consignação de pares digitais de TV, já que esses não são novas outorgas.

Um olhar geral

O governo Bolsonaro expediu 5.079 outorgas de serviços de radiodifusão, das quais 4.445 são retransmissoras de TV e consignações da União no âmbito do Digitaliza Brasil (87,5%) e outras 634 (12,5%) não se enquadram neste programa. Destas, 91 foram expedidas pelo MCTIC, responsável por essa atividade até 10 de junho de 2020. As demais 543 foram atos do MC, depois da separação dos dois órgãos. Na tabela abaixo é apresentada a média diária de outorgas de radiodifusão:

FaseMédia
Gov. Bolsonaro (com Digitaliza Brasil)3,48
Gov. Temer1,9
MC (sem Digitaliza Brasil)0,58
Gov. Bolsonaro (sem Digitaliza Brasil)0,43
MCTIC (sem Digitaliza Brasil)0,17

A tabela evidencia como o Programa Digitaliza Brasil foi decisivo para uma altíssima média de outorgas diárias. Por outro lado, quando considerados apenas os processos de outorga que tramitam segundo ritos tradicionais, verifica-se como a média diária foi bem inferior a observada durante o governo Temer.

A divisão de outorgas por serviços

Considerando-se apenas as outorgas decorrentes de procedimentos regulares do Ministério das Comunicações, chega-se ao seguinte gráfico:

O serviço de retransmissão de TV foi o contemplado com maior número de outorgas, mesma situação observada no governo Temer. Também se observa um número relevante de autorizações para retransmissoras de rádio (RTR). Somados, os serviços de retransmissão respondem por 291 novas outorgas, equivalentes a 45,9% do total. Permitem a expansão das redes existentes e, com isso, o acesso às programações por um maior número de cidadãos. Por outro lado, não representam avanço para a abertura do setor a novos atores e, nesse sentido, estimulam a concentração de mercado.

O Ministério das Comunicações expediu também outorgas de emissoras FM (12) e OM (1) "comerciais". São frutos de licitações iniciadas antes de 2010 e, apesar de o total dessas outorgas não ser expressivo, é importante ressaltá-las para evidenciar a enorme demora na conclusão desses processos.

Em relação aos serviços integrantes do sistema público, o total de outorgas de radiodifusão educativa dos governos Temer e Bolsonaro é parecido (respectivamente 30 e 26). Em quatro anos, o governo Bolsonaro outorgou mais rádios comunitárias (191) que o governo Temer (130), porém, considerando-se a duração de cada um, isso equivale a uma média semestral inferior por parte da gestão mais recente. O total nos dois casos é muito menor que o observado no governo Dilma (582).

Uma explicação parcial para esse resultado ruim pode ser a diminuição do número de municípios contemplados nos Planos Nacionais de Outorgas (PNOs). Desde 2016 não são publicados novos editais para radiodifusão educativa. Além disso, reduziu-se o número de municípios contemplados em editais de radiodifusão comunitária. Com menos processos seletivos, tende a ser menor o número de outorgas.

Existem, porém, outras razões. Há vários indícios de que os serviços de radiodifusão comunitária e educativa simplesmente não eram prioridade do Ministério das Comunicações na gestão ora estudada. Por exemplo: quando o órgão foi recriado, a estrutura aprovada por decreto não previu área específica (uma coordenação-geral, por exemplo) para a análise dos processos de outorga desses serviços. Tampouco houve qualquer movimento público por parte do órgão no sentido de buscar soluções, no âmbito legislativo, para antigas demandas das entidades que atuam nesses segmentos.

No governo Bolsonaro, o ministério proporcionou, ainda, uma expansão considerável à rede legislativa e à EBC. Foram expedidas 3.332 consignações de TV e rádio, o que representa impressionantes 65,7% de todas as 5.072 outorgas (e consignações). Excluídas as relativas ao Programa Digitaliza Brasil, as 112 consignações da União equivalem a 17,6% das 634. O governo Temer expediu apenas 39 consignações, 2,1% do total.

Dentre as 112 consignações da União durante o governo Bolsonaro, 62 delas foram expedidas para a EBC (55,3%); 41 para a Câmara dos Deputados, coordenadora da rede legislativa (36,6%); e as demais para o Ministério da Defesa e para a Marinha. A expansão da EBC chama especial atenção por ser bem maior que nos anos anteriores. Várias dessas consignações foram expedidas para municípios de pequeno e médio porte e no interior do Amazonas, onde não há disputa intensa por frequências, mas, graças a outras, a empresa pode instalar novas estações de TV em nove capitais e de rádio em quatro, incluindo São Paulo.

Quando o Ministério das Comunicações foi separado do MCTIC, passou a incorporar a Secretaria de Comunicação Social da Presidência da República, à qual estava vinculada a EBC. Com isso, a empresa passou a ser vinculada ao Ministério das Comunicações, órgão responsável por recurso essencial à expansão de suas atividades – as consignações.

A que preço? Desde o início do governo Bolsonaro, sinalizou-se que a EBC seria privatizada. Em paralelo, o governo federal defendeu e promoveu a fusão das programações da TV Brasil, considerada cerne da comunicação pública, e da NBr, voltada à comunicação institucional do governo. Com isso, destruiu barreira conceitual essencial à comunicação pública, que é sua autonomia frente a governos e ao mercado.

Quando o governo Bolsonaro terminou, a EBC havia obtido consignações para sua expansão em municípios importantes. As programações da antiga emissora pública e do canal institucional de governo permaneciam fundidas. Já a privatização da empresa não foi realizada; na verdade, sequer foram concluídos os estudos formais que são a primeira etapa do processo de desestatização de uma empresa pública.

É razoável elaborar a hipótese de que a privatização não ocorreu e, em direção oposta, a empresa se expandiu de forma considerável justamente porque a comunicação institucional de governo ganhou relevância nos principais meios de comunicação da EBC. Assim, o alto preço pago pela sobrevivência da EBC e por sua expansão (em um governo que rapidamente anunciara intenção de privatizá-la) foi a descaracterização da comunicação pública.

Conclusão

A política de outorgas de radiodifusão no governo Bolsonaro ficou marcada, portanto, pela aposta em um programa, o Digitaliza Brasil, que estendeu a capilaridade das redes de televisão aos menores municípios brasileiros, e pela ênfase em serviços de retransmissão. Esse enfoque pouco estimulou a entrada de novos atores no sistema privado de comunicação.

Em relação ao sistema público, observou-se, por um lado, uma ação incisiva no tocante à expansão da EBC e da rede legislativa e, por outro, falta de estímulo à radiodifusão educativa e às rádios comunitárias. A ausência, no primeiro caso, e a timidez, no segundo, dos Planos Nacionais de Outorgas tendem a gerar resultados inferiores aos possíveis, no que se refere a novas estações, nos primeiros anos do governo Lula.

Octavio Penna Pieranti é professor do Programa de Pós-Graduação em Mídia e Tecnologia da Universidade Estadual Paulista "Júlio de Mesquita Filho" (PPGMiT/Unesp) e servidor público federal. Autor de livros e artigos acadêmicos sobre políticas públicas para as comunicações e a regulação desse setor.

[1] Uma versão ampliada deste artigo foi publicada na revista acadêmica Galáxia. Nele são abordadas ainda outras perspectivas, como recortes temporais e geográficos das outorgas. Esse artigo pode ser baixado em: https://revistas.pucsp.br/index.php/galaxia/article/view/61081/43146

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