Após a catastrófica crise econômica de 2008, governos de todo o mundo, inspirados pelos EUA, passaram a imprimir moeda para evitar a falência de grandes instituições financeiras. Essa febre de "dinheiro grátis", que se estendeu ao menos até a pandemia de COVID-19, criou uma espécie de "Socialismo para os milionários e austeridade para os pobres" e foi utilizada principalmente para expansão do controle de mercados ("lucro é para os perdedores", cochichava-se nas esquinas das Farias Limas do planeta). Como consequência direta, tivemos uma concentração de recursos jamais vista nas mãos de grandes corporações, especialmente as Big Techs, com drástico aumento da desigualdade, criação de feudos, precarização do trabalho e efeitos colaterais devastadores, como disrupção política e promoção de ideias extremistas.
Longe de comparar os nefastos efeitos concentradores das práticas de bailout em termos de escala e impacto global, o que acontece na política audiovisual brasileira hoje pode estar levando nossa indústria a um futuro sombrio – especialmente preocupante em uma época em que o cinema independente em todo o mundo mostra sinais de vitalidade e recuperação promissores. A inclusão de novas vozes e perspectivas em uma indústria historicamente contaminada por um viés elitista e patriarcal é essencial para o fortalecimento do cinema independente (vou usar cinema, entendam como audiovisual em suas diversas formas).
Além de combater desequilíbrios, o cinema que vem sendo feito por mulheres, pessoas pretas, queer e outras vozes historicamente silenciadas tem sido, em geral, MELHOR, mais instigante, original e inspirador que as mesmas velhas histórias requentadas pelos machos brancos de sempre. E tal necessidade de inclusão tem sido contemplada nas regras de grande parte dos mecanismos públicos de financiamento da produção audiovisual no Brasil. Mas de boas intenções o inferno está cheio.
Para quem não sabe, as produtoras audiovisuais brasileiras são classificadas por uma atribuição de nível de 1 a 5 (o nível máximo), de acordo com critérios da Ancine, que se baseiam em número de filmes realizados e lançados por tais empresas. O objetivo inicial é louvável e sua aplicação para esse propósito específico deve ser mantida: limitar o montante de recursos por empresa que pode ser captado via incentivos indiretos ou fomento direto, evitando que atores de má fé, sem experiência de mercado, mas com acesso "privilegiado" a empresas privadas com grande volume de impostos a pagar, usufruam de milhões de reais em renúncia fiscal com projetos sem nenhum propósito além de "pegar um dinheiro grátis". Os problemas começam quando tais critérios passam a ser aplicados como critérios seletivos em editais e chamadas de ampla concorrência pública.
Um dos efeitos é a criação de um mercado paralelo de "rentistas de CNPJ", onde um pequeno produtor ou realizador com um excelente projeto acaba sendo inevitavelmente levado a entregar sua propriedade a tais "rentistas", ficando com uma pequena fatia como prêmio de consolação. Isso acontece no mercado privado – Hollywood, por exemplo – então qual o problema? A questão aqui é que não estamos falando de práticas privadas, mas de empresas que utilizam seu acesso privilegiado a RECURSOS PÚBLICOS para obter uma vantagem competitiva. Rentismo. Feudos. Concentração.
O segundo é que CNPJs podem ser comercializados. Em tese, o Neymar ou o Roberto Justus podem comprar um CNPJ Nível 5 amanhã e já usufruir de mais vantagens que produtoras com um excelente trabalho e que estão lutando para sobreviver. Isso não é estímulo à competição, é a criação de um moedor de carnes de talentos. Terceiro, não existe competição justa onde o Usain Bolt larga 5 metros à frente dos demais competidores. Ele já É O USAIN BOLT, mesmo aposentado. Finalmente (mas não exaustivamente), o mecanismo obstrui quaisquer intenções, por melhores que sejam, de promover efetiva inclusão.
Uma vez que, na largada, a qualidade e o potencial dos projetos se tornam, em geral, irrelevantes, já que alguns dos competidores entram portando um Nike Air Ship enquanto outros são obrigados a correr descalços, a utilização cumulativa de políticas de inclusão pelo portador do Nike Air Ship agrava o problema. Como ninguém é bobo, por que não usar a possibilidade de, digamos, somar mais 5 pontos de ações afirmativas aos 5 pontos já atribuídos por "classificação de nível" e largar 10 metros à frente dos competidores?
Um argumento a favor é que, ao menos, demografias historicamente desfavorecidas estão sendo incluídas pelo acesso a uma estrutura eficaz de produção e distribuição características da maior parte dessas grandes empresas. Mas inclusão em um clube não é o mesmo que inclusão social. Você precisa seguir as regras do clube – inclusive, "pagando uma taxa", que é a entrega de sua autoria e seu controle sobre sua criação aos donos (mais uma vez, donos do acesso a privilégios concedidos pelo poder público). Cabe a cada um a opção de fazê-lo ou não, mas o Estado, na prática, está obstruindo qualquer alternativa ao entregar de bandeja às empresas de maior porte a decisão sobre quem vai ser incluído.
Não há mercado sem grandes empresas e não há mercado saudável e dinâmico sem inclusão e competição. Mas não há efetiva inclusão e competição se as políticas públicas, distraída ou propositalmente, estimulam um uso distorcido dos mecanismos afirmativos para promover concentração e matar a competição. O que se assiste não é nem socialismo e nem capitalismo, é uma política feudal de concessão de capitanias hereditárias.
Há muitas maneiras de estimular a consolidação de grandes empresas que têm a capacidade de alcançar ótimos resultados e liderar o crescimento econômico da indústria e, ao mesmo tempo, com políticas afirmativas, "abrir todas as garrafas e libertar todos os potenciais gênios" (como dizia Gilberto Gil), dando-lhes a oportunidade de crescer em seus próprios termos e, assim, promover o crescimento artístico, cultural e, consequentemente, econômico, com efetiva igualdade, competição justa, aumento do emprego, estímulo a novas narrativas e visões de mundo, combate eficaz a distorções estruturais históricas e muita força criativa, o oxigênio do qual o cinema depende para sobreviver.
Uma ideia é que os mecanismos de fomento direto sejam divididos por categorias, em que cada nível de 1 a 5 tem uma seleção específica onde só se compete com produtoras do mesmo nível. A alocação dos recursos disponíveis por categoria pode ser feita levando em conta uma fórmula que considere a ocupação de mercado total das empresas de cada categoria, seu volume de produção e um fator indutor de baixo para cima, como o número de produtoras ativas por nível. Qualquer estatístico faz essa conta e encontra a fórmula com maior potencial de obter resultados positivos, em jogos de soma não zero.
Sempre com cotas ou induções inclusivas e de regionalização em cada categoria, além de limites orçamentários (por exemplo, as produtoras de nível 5 competiriam entre si para financiamentos de até R$ 20 milhões ou R$ 25 milhões, enquanto as de nível 1 começariam com R$ 2 milhões ou R$ 3 milhões). Em vez de "the winner takes it all", todos sairiam ganhando – principalmente o país.
Isso tudo precisa ser acompanhado de datas permanentes para abertura e encerramento de inscrições, divulgação dos resultados e contratações – digamos, duas chamadas por categoria/ano, abertas alternadamente mês a mês entre fevereiro e novembro todos os anos, gerando previsibilidade, maior organização e eficácia no fluxo de trabalho da Ancine e evitando sazonalidades que encarecem os custos de produção e muitas vezes levam profissionais freelancer e donos de pequenas empresas ao desespero. Um cronograma assim organizado permite ainda avaliações mais criteriosas, pareceres mais detalhados e precisos e até mesmo a chance de implementar sistemas de pitching para todos os projetos concorrentes. Com menor custo para a sociedade – na verdade, com reais benefícios.
De qualquer forma, se trata de um debate absolutamente urgente, levando a criação de regras claras que não possam ficar à mercê de mudanças de governos, diretorias e conselhos. Do contrário, corremos o risco de já estar promovendo mais concentração e fomentando novas crises para o "ano que vem", mesmo cheios de boas intenções.