Gustavo Vaz é um artista multifuncional, que já se destacou em projetos para TV e streaming, como as séries "Coisa Mais Linda" (Netflix), "Aruanas" (Globoplay) e "Só se for por amor" (Netflix), entre outras, além de ter uma extensa carreira como diretor e dramaturgo, à frente da ExCompanhia de Teatro, e, recentemente, ter feito sua estreia como autor de ficção, com o romance "Como não morrer de uma só vez", da Editora Mondru.
Agora, ele prepara um projeto inédito: um documentário para conhecer mais sobre sua mãe – especificamente, sobre sua voz. "A Voz de Iara" traz um significado simbólico para Vaz, pois surge como um processo de busca de um filho que vai em direção à falta de uma memória desconhecida: a voz de sua mãe. O artista a perdeu aos dois anos e meio de idade e, neste projeto – já em desenvolvimento, com grande parte do material captado – familiares e amigos de Iara se deparam com a dificuldade de reconstruir a voz de uma pessoa por meio das palavras.
"Acho que essa percepção sobre essa falta de memória e de registro da voz da minha mãe surgiu quando eu comecei a querer investigar essa parte da minha história – que talvez tenha ficado adormecida nos primeiros 30 anos da minha vida. A entrada nos 30 iniciou na minha jornada um processo de autoconhecimento, de investigação da própria história, que naturalmente caiu sobre esse ponto importantíssimo, que foi a perda da minha mãe aos dois anos e meio", contou Gustavo Vaz em entrevista para TELA VIVA. "Isso foi algo que me formou e forjou como sou em muitos aspectos. Ao me debruçar sobre a história da minha mãe – mas principalmente as memórias dela, as que eu carregava e as que eu não carregava – me deparei com essa constatação, que é eu não ter nenhuma memória viva ou sensorial – pelo menos numa primeira camada de consciência – da voz dela", prosseguiu. "A voz é um veículo de comunicação muito poderoso, muito marcante e também definidor na construção das relações", pontuou.
Concepção e desenvolvimento do projeto
Vaz diz que ele, como um artista criador, parte de si próprio e de suas experiências com o mundo para conseguir se expressar, se elaborar diante do mundo e abrir espaços de pensamento, encontro e identificação das pessoas com as obras que faz: "Não deixa de ser também um processo de cura, mas entendi que seria importante transformar esse autoconhecimento e descoberta em uma expressão artística". Foram cerca de oito anos com a ideia, indo e voltando, em busca da resposta: esse processo deveria se tornar uma obra para todo mundo ver? Se sim, qual seria o melhor formato?
"Tocar em temas pessoais é delicado. Há de se ter cuidado, olhar com muita clareza sobre os porquês de fazer isso. Por isso demorei para conseguir encarar de verdade a possibilidade de colocar isso no mundo. Ainda é delicado e difícil em alguns pontos para mim. Mas, depois desse tempo, os sentidos estão mais claros, e me fazem acreditar que tem sentido falar dessa história. Não é uma homenagem para a minha mãe, não quero abordar dessa forma. Mas a história dela e essa jornada em busca dessa voz desconhecida me parecem ser espaços interessantes e potentes pra que a gente construa alguma espécie de identificação com pessoas que passaram por coisas parecidas", refletiu.
Decidido a transformar essa jornada numa produção cultural, Vaz pensou inicialmente em fazer uma peça de teatro. "Mas acho que o registro sobre esse processo faria mais sentido ser colocado como uma obra audiovisual, que é algo mais consistente através dos tempos. Por isso a decisão por um documentário – que ainda estou entendendo se será um curta ou um média-metragem", explicou.
"Comecei o trabalho de forma despretensiosa, ainda sem saber se seria um registro para mim ou para o mundo. Conversei com familiares – minha avó, tia, tios, pai e uma amiga da época – que era o núcleo mais próximo da minha mãe. Essas conversas são as grandes condutoras dessa experiência que vai ser o documentário. Durante o processo, o que começou a saltar de maneira forte para mim é que até agora não há registro em vídeo. Não tenho registros reais dela em movimento gravados nem registros oficiais dela falando. Só fotografias. Então nessa busca pela voz, duas coisas apareceram, que se tornaram duas grandes forças de ação do documentário: começar a descobrir uma mulher de maneira tridimensional, vista por outras perspectivas, fazendo com que minha mãe, que era uma memória chapada em fotografias, se torne uma pessoa que realmente existiu pra mim; e a percepção de que talvez seja realmente complicado conseguir explicar a voz de uma pessoa", observou o diretor.
Agora, ele está decidindo se será necessário ampliar esses depoimentos e pensando em como compor a dramaturgia do documentário. "O grosso da pesquisa já está ali, e muito provavelmente terei isso organizado para ir para o caminho de montagem e de edição em breve", adiantou.
Voz como metáfora
Por fim, Gustavo ainda falou sobre a potência metafórica que essa história da busca pela voz da sua mãe traz para que outros assuntos sejam discutidos, de forma mais ampla. "Minha mãe sempre quis estar ligada ao mundo artístico. Durante um tempo, ela quis ser atriz de teatro, mas não conseguiu por conta do cerceamento do meu avô, que inclusive era ator de teatro, mas que de maneira machista, dentro da estrutura patriarcal forte da época, não achava que o teatro era um lugar para ela estar. Com isso, a voz dela foi cerceada de alguma maneira, e acho que fez muito sentido para mim olhar para isso e pensar que talvez seria importante para nós dois construir esse registro da passagem dela pelo mundo. Da Iara, uma mulher extremamente otimista, alegre e de bem com a vida, que gostava de estar no centro das atenções e que queria ter estado no palco. Por isso também começou a fazer muito sentido transformar tudo isso em um registro artístico", concluiu.
"O trabalho é sempre pessoal"
O diretor afirmou que todo trabalho que faz – seja como ator, diretor, dramaturgo, escritor – é um processo pessoal: "Sempre trago como material para os meus trabalhos a minha experiência de vida, com as minhas dores, dificuldades e percepções, lugares onde me conecto com histórias que estou contando. A partir da contação de histórias, espero ampliar a consciência, divertir, tirar as pessoas da jornada cotidiana massacrante para que elas se percebam diferentes no mundo e saiam provocadas".
Eu que convivi com Iara e a amei, estou com expectativa de que esse trabalho seja a concretização do sonho dela de estar através da arte, publicamente nos o oferendo todo explendor que tinha dentro de si.