O que a Netflix leva e o que deixa de legado com suas superproduções brasileiras

A série recebeu o maior investimento já feito em uma produção no Brasil pela Netflix. Crédito: Divulgação

Durante a pandemia de Covid-19 e nos anos de congelamento na destinação de recursos públicos ao setor audiovisual, as plataformas de streaming tiveram o grande mérito de manter as atividades de produção de conteúdo quando o poder público não se fez presente. Passadas as dificuldades, tanto na saúde pública global quanto na saúde dos mecanismos de financiamento público da produção audiovisual, as plataformas se mostram importantes para o setor alcançar um nível de produção antes inviabilizado pelo baixo teto de uso de recursos públicos em uma produção.

A sofisticação das cenas de ação em "DNA do Crime" refletem muito trabalho de pesquisa e tempo de produção, bem como o envolvimento de especialistas, o tamanho da equipe, a escolha de locações e figurino. (Crédito: Guilherme Leporace e Alisson Louback/Divulgação)

Duas super-produções da Netflix mostram como o valor da produção tem reflexo na tela: "DNA do Crime", produzida pela Paranoid e lançada em novembro, e "Senna", que foi gravada no segundo semestre do ano pela Gullane e deve ser lançada em março de 2024.

No caso de "DNA do Crime", a sofisticação das cenas de ação refletem muito trabalho de pesquisa e tempo de produção, bem como o envolvimento de especialistas, o tamanho da equipe, a escolha de locações e figurino. São diversos exemplos de inovações nas produções brasileiras que não poderiam acontecer trabalhando dentro do teto de investimentos das leis de incentivo e das linhas do Fundo Setorial do Audiovisual:

  • Para as explosões na cena do assalto, a equipe criou um tijolo com massa específica, uma vez que o material original dos tijolos poderia ser perigoso para os atores que estariam próximos das explosões. A equipe desenvolveu um modelo de tijolo com uma consistência que pudesse suportar uma parede, mas que também explodir sem prejudicar os atores;
  • O supervisor de ação David Chan, que é português e passou três meses morando no Brasil para filmar a série, fez um trabalho de linguagem corporal com todos os atores que interpretaram policiais federais, além de criminosos. O elenco aprendeu sobre a postura corporal dos policiais, abordagem de suspeitos, manejo de armas, trabalho em dupla (com cães) e brigas em ambientes confinados;
  • O elenco recebeu treinamento em manobras de direção de precisão para ficar mais confortável ao volante;
  • Ao lado de atores e atrizes de grande talento, trabalharam policiais e egressos do sistema carcerário. Todos desempenharam bem em virtude da troca entre profissionais e não atores;
  • A produção usou dez tipos de câmeras nas filmagens, desde aparelhos de última geração até iPhones;
  • A equipe de arte contou com 60 profissionais, entre produtores de arte, produtores e coordenadores de objetos, ajudantes de palco, assistentes e outros;
  • A equipe de arte preparou quase 200 locações para a série, desde a sede da Polícia Federal em Foz do Iguaçu/PR, até as casas dos protagonistas;
  • A equipe filmou a série em 17 cidades, que na trama se transformam em diversas outras;
  • 127 atores formaram o elenco principal, coadjuvante e secundário. A equipe também contou com mais de 2 mil extras;
  • O departamento de figurino levou três caminhões cheios de roupas para as filmagens em Foz do Iguaçu. Foram cerca de 20 mil peças, entre roupas e acessórios para elenco e atuação.

"Série como DNA do Crime, ou como Senna, são premium. São séries que exigem uma capacidade de investimento forte, a qual o investimento público não alcança. O investimento da plataforma é muito positivo pois eleva o patamar geral da indústria. Não podemos esquecer que, sistemicamente, foi a politica pública quem forjou os profissionais que desenvolveram essas séries premium. Há uma retroalimentação. O quadro dirigente das plataformas é formado por muita gente egressa de produtoras independentes. Isso revela que a indústria tem laços de solidariedade", diz o produtor de "DNA do Crime", Manoel Rangel.

"DNA Do Crime" usou dez tipos de câmeras nas filmagens, desde aparelhos de última geração até iPhones. (Crédito: Guilherme Leporace e Alisson Louback/Divulgação)

Segundo ele, o resultado obtido com a série produzida pela Paranoid é muito superior ao valor aportado, graças a uma decisão da produtora de "destinar todo o dinheiro para a tela". "Quando o talento brasileiro – nossa capacidade instalada, nossos fotógrafos, roteiristas, atores e atrizes, profissionais de produção – encontra um ambiente de liberdade criativa, instiga o melhor das pessoas. Quando se encontra os meios de financiamento que permitem realizar o que foi desenvolvido, isso vai para a tela", diz Rangel.

Para Fabiano Gullane, produtor da Gullane Entretenimento, realizadora da série "Senna", um produto dessa dimensão seria diferente sem uma plataforma ou parceiro internacional. A série recebeu o maior investimento já feito em uma produção no Brasil pela Netflix. Gullane lembra que não existe ainda hoje no Brasil mecanismos ou investidores ou recursos no mercado para se fazer um projeto deste tamanho de forma independente. "Acho que o 'Senna' abrirá uma porta muito grande para os realizadores brasileiros. Esse tamanho de produção seria inviável sem que a gente reunisse este valor de recursos para todas as necessidades de talento, elenco, produção, efeitos especiais, tamanho de produção", diz o produtor.

Legado

Esse perfil de produção deixa ainda como legado uma experiência que o audiovisual brasileiro pouco pôde experimentar. "Não estamos falando só de recursos, mas de uma inteligência e tecnologia de quem já está acostumado a trabalhar mundialmente. Temos uma ajuda da equipe de elenco da Netflix que está acostumada a contratar elenco internacional para grandes projetos. Essa turma nos ajudou a conectar com os produtores internacionais de elenco ideais para o 'Senna'", exemplifica Gullane.

A série "Senna" culmina na utilização de diversas metodologias inovadoras que a Netflix tem implementado em diversos programas do mercado brasileiro e internacional. Crédito: Divulgação.

Para os efeitos especiais, por exemplo, a Netflix trouxe a Scanline, uma das maiores empresas de efeitos visuais do mundo, em seu primeiro projeto com o Brasil, para liderar a produção de efeitos visuais em conjunto com fornecedores locais. Com isso, "Senna" tem a maior equipe de gerenciamento de efeitos visuais de produção de qualquer uma das produções da Netflix. "Juntos construímos um modelo no qual contratamos uma empresa estrangeira, mas também trazemos os efeitos especiais para o Brasil contratando empresas brasileiras de pós-produção e efeitos especiais, para trazermos a contribuição dos brasileiros ao projeto, e para que também a gente pudesse deixar um legado aqui no Brasil na área de efeitos especiais", conta Gullane.

A série "Senna" culmina na utilização de diversas metodologias inovadoras que a Netflix tem implementado em diversos programas do mercado brasileiro e internacional, como por exemplo:

  • Efeitos visuais 3D na câmera
  • Previs e Techvis – são a utilização de animação 3D para reconstruir sequências que serão filmadas futuramente para fins de planejamento;
  • Lidar Scans e fotogrametria de cenários e objetos (a produção física tem contrapartida digital utilizada tanto na Produção Virtual quanto nos Efeitos Visuais);
  • Motion Capture ou Performance Capture – transferência de movimento (e atuação) de um ator para um personagem digital;
  • Captura volumétrica – técnica para capturar, em 3D, o trabalho dos atores e locações de forma ultra-realista. Permite editar posteriormente luz, animação e movimentos de câmera no material capturado.

Para Gullane, a produção independente brasileira já vinha construindo uma trajetória audiovisual internacional importante com o cinema, muito por conta das políticas públicas brasileiras, e as plataformas internacionais reconheceram isso ao contratar o produtor brasileiro e investir no talento local. "Para as equipes técnica e artística, ter administrado e colocado na tela um projeto deste tamanho, um projeto com cerca de 170 dias de filmagens, quatro países envolvidos na produção, é um legado importante", diz o produtor de "Senna".

Modelo de trabalho

Segundo Haná Vaisman, diretora de séries de ficção da Netflix Brasil, a relação da plataforma com as 80 produtoras locais brasileiras parceiras é mais intensa e responsável do que acontece no mercado. A troca é diária da plataforma com os showrunners. "Temos um envolvimento muito próximo. Conversamos muito a cada etapa de entrega, analisamos, damos nota. É quase como um 'doctoring' constante. Geralmente trabalhamos em duplas de executivos da Netflix, estabelecendo diálogo com todas as etapas, com o criador, com a sala de roteiro", diz Vaisman.

Segundo Haná Vaisman, diretora de séries de ficção da Netflix Brasil, a relação da plataforma com as 80 produtoras locais brasileiras parceiras é mais intensa e responsável do que acontece no mercado. (Crédito: Julia Rodrigues/Divulgação)

A plataforma, explica a executiva, vem aprendendo como estruturar a sua metodologia no Brasil, respeitando o modelo local. "É um sistema diferente. Os estúdios americanos estão acostumados com as notas do player. Fomos entendemos como fazer isso do nosso jeito, estabelecendo um relacionamento de confiança. Se a gente não mostra que tem onde colaborar e também que está escutando o que para o produtor é importante, a coisa não anda. Fomos encontrando um lugar de troca, escuta e aprendizado", conta Vaisman.

"DNA do Crime" foi desenvolvida através dessa conversa entre plataforma e criador/produtor. "Como produtores, tomamos a decisão de gerar uma série de adrenalina, de ação policial, mas de investigação também. Também houve uma decisão estrutural de, em cada episódio, ter pelo menos dois 'set pieces' de ação que deveriam ter toda a força dos eventos criminosos que nos impulsionaram na criação: os domínios de cidades. A Netflix percebeu a potência e decidiu comprar o projeto, deu a força para que embrenhasse nessa trilha. Não ouvimos não da interlocutora criativa, que em nenhum momento nos represou. Pelo contrário, percebeu toda a força criativa e permitiu que tudo de mais poderoso pudesse vir", diz Manoel Rangel.

Fabiano Gullane diz que o trabalho com a Netflix agrega uma colaboração forte nas áreas centrais de cada projeto – desenvolvimento, negociações, business affairs , jurídico, produção, pós-produção, lançamento – e que para cada uma destas áreas há um correspondente muito ativo dentro da plataforma. "A gente tem times internos que supervisionam as diversas etapas da produção. Tem uma parte de gestão da produção, do financeiro e de segurança", complementa Haná Vaisman.

"Isso é bem diferente de quando trabalhamos numa produção independente. Isso amplifica muito a necessidade da comunicação, alinhamento e sincronicidade das ações. Não é um projeto feito em coprodução. É um projeto que foi cedido para Netflix, hoje em dia a série 'Senna' é um projeto da Netflix, então temos que seguir suas linhas e indicações em termos de tamanho de projeto e de escolhas do que vamos fazer. Por isso passa a ser uma escolha a quatro mãos, sempre respeitando a liberdade criativa dos diretores, diretoras, roteiristas e demais talentos, mas considerando sempre os limites que a Netflix traz. Não é mais fácil ou mais difícil, é simplesmente diferente. Isso é uma coisa que a gente se acostuma, é um modelo de produção", diz Gullane.

Propriedade

Para o produtor de "Senna", o que o modelo de serviço de produção em prática inviabiliza é que o produtor independente brasileiro seja o proprietário da obra. "Para o futuro, torcemos para que o Brasil entre em acordo com nosso mercado independente, com as plataformas, com as televisões e com todos aqueles que exploram o mercado brasileiro, para que juntos cheguemos logo em um mecanismo de regulação das plataformas de VOD no Brasil, como já temos em outros setores da indústria audiovisual. Estamos vendo uma discussão intensa entre os players, mercado e poder público sobre esse assunto. Quando a gente conseguir este modelo de mercado de VOD regulado, acho que podemos ter ainda mais projetos que façam esta carreira bonita e esse caminho internacional, mas que o produtor, o empresário e os talentos brasileiros tenham uma participação na propriedade intelectual destas obras. Se no futuro pudermos conciliar realizar a produção para streaming com retenção parcial ou integral da propriedade intelectual na indústria brasileira, será um passo importante para consolidarmos nosso mercado, nossa indústria local", diz Fabiano Gullane.

Manoel Rangel vai pelo mesmo caminho. "A remuneração é a questão. Há uma taxa de gerenciamento para a produtora. Os profissionais, portanto, são remunerados. Mas nesse modelo, não há propriedade patrimonial para o produtor. Há um modelo de licenciamento praticado no exterior, pelo conjunto das plataformas de streaming, que remunera os envolvidos, mas também investe na ideia de que há compartilhamento de propriedade. O produtor independente retém uma propriedade patrimonial da obra, o que é muito relevante quando se pensa em desenvolvimento de uma indústria autônoma. O modelo de licenciamento, através do qual as plataformas retêm parte da propriedade patrimonial e o produtor independente, também, inicia círculos virtuosos em toda a cadeia de valor", diz o produtor de "DNA do Crime".

Brasil

"O Brasil tem um manancial de histórias incríveis para entregar e a dublagem está aí para resolver as dificuldades que haviam com o idioma. A produção não precisa mais ser em língua inglesa", diz Rangel. "Digo com todas as letras que a Netflix, ao fazer a aposta em parceria com produções locais, coloca em cheque um modelo hegemônico no qual apenas um ou ou dois centros de produção têm o direito de produzir o produto premium. A ideia de que o premium possa ser feito em toda parte é benéfico para o audiovisual como um todo", complementa.

"O Brasil também é um país de muita capacidade técnica, de muita capacidade artística. Posso afirmar que as equipes criativa e de produção do Brasil têm um talento ímpar para a implementação de soluções inteligentes de produção. É impressionante o que conseguimos realizar na produção audiovisual quando comparamos os orçamentos brasileiros com os orçamentos do restante do mundo – seja o orçamento viabilizado pela produção independente ou viabilizado via plataformas de streaming. A nossa capacidade de pensar fora da caixa, fora do padrão e propor caminhos para a produção é impressionante. E isso faz muita diferença no resultado em tela", finaliza Fabiano Gullane.

DEIXE UMA RESPOSTA

Por favor digite seu comentário!
Por favor, digite seu nome aqui