A nova política concentracionista da Agência Nacional do Cinema

* Angélica Coutinho é pesquisadora de pós-doutorado da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra – Portugal

No dia 20 de novembro saíram os resultados do Concurso Cinema 2023 do Edital Ancine-BRDE em duas modalidades, Nacional e Regional. Eles servem para confirmar minha tese de que a maneira como os editais são formulados pelo Comitê Gestor do FSA implicam diretamente nos resultados. Um exemplo claro diz respeito ao limite de investimentos por produtoras. Até, pelo menos, 2018, havia limites impostos em cláusula dos editais com base no total dos recursos disponibilizados. Esta é uma questão complexa que necessita de uma análise mais acurada que farei posteriormente, pois se trata do meu objeto de pesquisa. Estou concentrada em avaliar a importância de uma política pública democrática baseada nas premissas da publicidade e impessoalidade, em particular, e na possibilidade de permitir novos entrantes no mercado. Questões a serem detalhadas posteriormente. No entanto, no calor da hora, há algumas questões a serem destacadas.

A distribuição dos recursos da Modalidade Regional 2023, conforme a ata do resultado preliminar da decisão de investimento registra que havia R$ 100 milhões para o investimento, sendo no mínimo R$ 70 milhões para projetos de produtoras das regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste (CONNE); e até R$ 30 milhões para projetos de produtoras da região Sul e Estados de Minas Gerais e Espírito Santo (FAMES). Foram selecionados 27 projetos, com um valor total aportado de R$ 99.325.574,73.

Os resultados por estados foram distribuídos da seguinte maneira:

Na CONNE

  • Nove projetos de Pernambuco com o total de investimento de R$ 36.551.679,93;
  • Três projetos do Ceará com o total de investimento de R$ 14.618.255,00;
  • Três projetos do Distrito Federal com o total de investimento de R$ 8.907.496,80;
  • Dois projetos da Bahia com o total de investimento de R$ 6.625.000,00;
  • Um projeto do Pará com o total de investimento de R$ 3.000.000,00.

Um total de R$ 70.246.574,73.

No FAMES

  • Três projetos de Santa Catarina com o total de investimento de R$ 7.594.000,00;
  • Dois projetos de Minas Gerais com o total de investimento de R$ 7.485.000,00;
  • Dois projetos do Rio Grande do Sul com o total de investimento de R$ 6.500.000,00;
  • Um projeto do Paraná com o total de investimento de R$ 7.500.000,00.

Um total de R$ 29.079.000,00.

Para efeito de análise, se formos considerar que o número de projetos selecionados para a decisão de investimento, após habilitação e aprovação na primeira etapa baseada em pontuações da performance das empresas – produtoras e distribuidoras – e dos diretores, temos os seguintes números registrados na ata publicada em 3 de novembro:

Na Modalidade Regional – CONNE – foram para a decisão de investimento 49 projetos, assim distribuídos:

  • 16 projetos de Pernambuco;
  • 12 projetos do Distrito Federal;
  • Oito projetos da Bahia;
  • Seis projetos do Ceará;
  • Dois projetos de Goiás;
  • Dois projetos do Maranhão;
  • Um projeto do Mato Grosso do Sul;
  • Um projeto do Pará;
  • Um projeto do Amazonas.

Na Modalidade Regional – FAMES – foram para decisão de investimento 28 projetos dos seguintes estados:

  • 15 do Rio Grande do Sul;
  • Oito de Minas Gerais;
  • Quatro de Santa Catarina;
  • Um do Paraná.

São 77 projetos, sendo que 26 foram selecionados para receber recursos, ou seja, cerca de 33%. E apenas um estad, dos 13 com projetos concorrentes, Pernambuco, teve cerca de 34% da totalidade dos selecionados em toda a Modalidade Regional.

Voltamos, portanto, à questão central: os resultados dos concursos do FSA são diretamente induzidos pela maneira como os editais são elaborados. Para evitar a concentração e, obviamente, democratizar o acesso aos recursos, os editais de Concurso Cinema desde 2012 até 2018 (excetuando 2017 quando não houve edital na modalidade) apresentavam na cláusula 4.1. a seguinte regra: "Nenhuma proponente ou Grupo Econômico poderá receber investimento superior a 10% (dez por cento) dos recursos disponíveis para esta chamada pública". Além disso, os editais de Concurso Cinema dos anos 2013 a 2016 limitavam o número de propostas aprovadas por Unidade Federativa: três no caso da CONNE e 1 ou 2 no caso do FAMES. Esta regra de limite por UF não existe nos editais de 2012 e 2018.

No entanto, o que vemos no edital Concurso Cinema 2023 é que nenhum dos dois limites é aplicado, assim como no edital Concurso Cinema 2022. A cláusula 4.1 apenas limita o número de propostas inscritas e a serem aprovadas por produtora ou grupo econômico assim como define o teto do valor a ser investido por projeto. A ausência de limite de 10% do total disponibilizado e de número de projeto por Unidade Federativa provocou grave distorção no resultado deste ano.

No caso da Modalidade Regional, um único estado – Pernambuco – foi aprovado com nove projetos, recebendo pouco mais de 50% dos recursos na modalidade dos estados do chamado CONNE – Norte, Nordeste e Centro-Oeste. A totalidade de recursos a serem recebidos por Pernambuco corresponde a cerca de 40% do total investido nos projetos de produtoras de Rio de Janeiro e São Paulo – cujo total da Modalidade soma R$ 87.422.588,20.

Na Modalidade Nacional, a distorção dá-se de outra maneira: há duas produtoras que tiveram dois projetos aprovados para investimento cuja totalidade de recursos ultrapassa 10% dos R$ 90 milhões disponibilizados.

A Panorâmica Comunicação foi selecionada com um projeto de R$ 7,5 milhões e outro de R$ 5,55 milhões, somando R$ 13,05 milhões, ou seja, 14,5% do total de recursos da modalidade. O caso se repete com a Biônica Cinema e TV, aprovada com um projeto de R$ 4 milhões e um segundo de R$ 7,5 milhões, somando R$ 11,5 milhões, ou seja, cerca de 12,7% do total.

Foram para a decisão de investimento 46 projetos, sendo 28 do Rio de Janeiro – com nove selecionados – e 17 de São Paulo – com quatro selecionados. Apenas três produtoras tiveram mais do que um projeto selecionado: além das duas citadas acima, a Gullane Entretenimento foi contemplada em dois projetos, os de menor valor entre todos os aprovados na Modalidade Nacional.

Nesta breve análise desponta um evidente descuido na definição das regras e elaboração do edital, assim como falha no processo de seleção pela comissão de avaliadores cujos nomes, aliás, não constam na ata dos resultados.

No documento de Diretrizes do FSA editado em 2016 consta, pelo menos, dois itens a serem destacados:

  • Melhorar a posição competitiva das empresas brasileiras independentes do cinema e do audiovisual nos mercados interno e externo;
  • Atuar em gargalos específicos de segmentos deficientemente contemplados pelos mecanismos de fomento vigentes.

Obviamente, dois objetivos que se opõem frontalmente ao resultado apresentado do edital Concurso Cinema 2023. Primeiro porque não é possível melhorar a posição competitiva das produtoras no mercado interno privilegiando sempre os mesmos grupos, alguns dos quais também foram bem contempladas nos editais da Lei Paulo Gustavo. E, muito menos, atuar em gargalos quando apenas um estado da federação é selecionado com nove projetos.

No entanto, ao buscar na Internet o documento das Diretrizes do FSA para verificar se algo havia mudado, descobri que, em 2021, o Comitê Gestor alterou seus objetivos:

  • I – Garantir a equalização da situação orçamentária e financeira do FSA;
  • II – Ampliar o retorno financeiro do FSA;
  • III – Mitigar os riscos dos investimentos do FSA;
  • IV – Promover o desenvolvimento de todos os elos da cadeia.

Objetivos estratégicos:

  • I – Promover a presença da produção nacional em todos os segmentos de mercado e seu acesso pela sociedade brasileira;
  • II – Impulsionar o crescimento econômico do setor audiovisual brasileiro;
  • III – Estimular a inserção internacional do setor audiovisual brasileiro;
  • IV – Promover a regionalização do fomento ao setor audiovisual brasileiro;
  • V – Estimular a qualificação da produção audiovisual.

Talvez, a mudança nos editais com a exclusão de limite de investimento por produtora seja uma estratégia para cumprir as novas diretrizes, definidas durante o "apagão" que vivemos entre 2020-2021. A questão é que se favorece um novo modelo de política concentracionista e pouco transparente, o que já é possível notar na maneira como o processo de seleção é realizado. Desde que os editais voltaram a ser lançados em 2022, não há mais pareceres escritos que permitam ao proponente elaborar seu recurso contra a decisão das comissões.

1 COMENTÁRIO

  1. […] Acreano produtor do premiado "Noites Alienígenas" criador do Matapi, sócio da produtora Leão do Norte e diretor Norte da CONNE leva a voz do setor nortista para a entidade do Ministério da Cultura. Desta forma, espera-se que possamos ver avanços na distribuição mais igualitária das verbas para os editais do Fundo Setorial do Audiovisual, visto que um estudo da própria Ancine apontou que 45% do investimento público no cinema do país segue direcion…  […]

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