Em dezembro de 2022, a Boutique Filmes, baseada em São Paulo, completou dez anos no mercado brasileiro. A produtora, conhecida por alguns projetos históricos, como “3%”, a primeira série para streaming do Brasil e a primeira produção original nacional da Netflix, vem se destacando produzindo grandes sucessos em todas as plataformas de streaming e também fomentando não só o setor audiovisual, mas também o editorial: a empresa é uma das principais produtoras a investir na aquisição de direitos de livros. No último ano, eles lançaram com o Globoplay a série “Rota 66: A Polícia que Mata”, inspirada no livro escrito por Caco Barcellos. Até o momento, eles já foram responsáveis pela produção de 50 projetos, mais de 2 mil horas de gravação e o envolvimento de cerca de 8 mil profissionais. A produtora também acumula três indicações ao International Emmy Awards.
“Nossa trajetória atravessou diferentes momentos do mercado. Nos juntamos para abrir a produtora no final de 2012, em um momento em que a Lei da TV paga estava começando. A primeira coisa que fizemos foi encubar projetos: ficamos seis meses desenvolvendo, sem produzir de fato. Contratamos um time de roteiristas e ficamos pensando em formatos. A partir daí, iniciamos as conversas com players para produzir séries para a TV paga. Na época, não havia streaming e a TV aberta não trabalhava com produtoras independentes. Era uma novidade, porque até então as produtoras faziam cinema e publicidade. Nenhuma delas era focada em televisão”, relembrou Gustavo Mello, produtor, criador e um dos sócios da Boutique, em um papo exclusivo com TELA VIVA.
“Logo aprendemos que precisamos focar e nos tornar especialistas naquilo. Olhando pra fora, para outros mercados, é assim: as produtoras são bem especializadas. Acredito que, para ter excelência nas propostas, esse seja o caminho. Mas aí veio o streaming e fizemos ‘3%’, que foi uma série pioneira. Além de ter sido a primeira série brasileira para o streaming foi uma das primeiras do mundo também. Ela foi lançada no final de 2016 e se tornou o produto mais consumido em língua não-inglesa no mundo, o que foi uma quebra de paradigma para o mercado, uma vez que, até então, diziam que as séries brasileiras não viajavam. A gente ouvia isso nos mercados. Começamos a pensar nesse mercado que pode ser local e internacional ao mesmo tempo. Um novo mundo se abriu”, completou Tiago Mello, produtor executivo e também sócio.
“Hoje, estamos num momento bastante consolidado, e celebrando o fato de que trabalhamos com todos os players. É uma conquista baseada na nossa estratégia de construir propriedades aqui dentro da casa. Foi essa força criativa que fez com que a gente entrasse em todos os players. Consolidamos nossa diversidade de parceiros e ainda a questão operacional – não somos mais centralizados só nos sócios; temos níveis de liderança experientes para lidar com esse novo momento do mercado. São pessoas tomando decisões e operando de maneira mais sólida, com mais escala, mas mantendo a qualidade. Esse é um lugar que não podemos perder. Não temos uma relação de prestação de serviço – os players nos procuram porque sabem que temos um olhar de implementação na produção, um olhar criativo em relação a tudo o que vai para a tela. Estamos presentes no dia a dia, no set, na sala de roteiro. Não somos só executivos”, ressaltou Gustavo.
Surgimento das plataformas e novos hábitos de consumo
Os sócios da Boutique acompanharam de perto as transformações do mercado – principalmente a chegada das plataformas de streaming, a consolidação das mesmas no país, o aumento na demanda por conteúdo original nacional e as mudanças nos hábitos de consumo da audiência. “Começamos a ver demanda por entretenimento premium, com volume de produção, e naturalmente direcionamos esforços para atender. É uma estratégia que, aos poucos, constituímos, tanto de estrutura da empresa quanto de portfólio. Começou em 2016 e foi crescendo. Continuamos fazendo Pay TV – o último governo atrapalhou bastante, por conta das leis de incentivo, o que nos direcionou ainda mais para o streaming. As plataformas geraram uma demanda muito maior do que tínhamos quando era apenas Pay TV”, observou Eduardo Piagge, diretor de fotografia e produtor executivo.
Para Gustavo, a competição hoje em dia é com séries vindas de qualquer lugar, uma vez que a audiência não quer mais saber de onde é aquele produto: “Precisamos entregar nível de excelência e valor de produção. Com exceção do Globoplay, as grandes plataformas são todas de fora. Existe um nível de exigência, que só é atingido a partir de uma estrutura sólida de produção e pós-produção”. Segundo Tiago, não se trata apenas de produzir, e sim de um processo completo: “Sempre pensamos em como maximizar a energia criativa daquele grupo de pessoas e fomentar a diversidade – algo que queremos estreitar cada vez mais. O Brasil precisa se ver na tela, tanto na frente quanto atrás das câmeras. Ter mais diversidade nas produções, em todos os sentidos, é um movimento muito importante para nós”. Atualmente, a Boutique conta com uma política institucional de diversidade e integridade em todas as produções da casa.
Análise de mercado: o momento é de reconstrução
Ao avaliar o momento atual do audiovisual nacional e também os últimos anos, Tiago argumentou que os quatro anos passados foram especialmente dramáticos para o Brasil porque ficamos para trás no comparativo com outros países: “Territórios como Coreia do Sul, Espanha e México se organizaram muito, enquanto as nossas estruturas – e não só as leis de incentivo – foi sendo demolida. E no meio da pandemia. Então o setor realmente sofreu. Mas vejo que há um novo momento agora, de reconstrução de diversos setores, não só do audiovisual. Não é uma coisa ideológica: realmente foi construído um projeto de destruição do que somos como Brasil, da nossa cultura. E isso tem um preço. A Coreia, por exemplo, teve um esforço governamental e organizado para ‘vender Coreia’. Hoje, eles estão em todos os lugares. A Colômbia, por sua vez, investiu muito no mecanismo de cash rebate. Enquanto nós fomos sendo destruídos, os outros países se organizaram cada vez mais”.
O produtor prosseguiu: “O mundo, depois da pandemia, é diferente. Temos uma oportunidade histórica de fazer com que as nossas séries, a nossa cultura e a nossa arte tenham uma presença marcante no mercado global. Com a retomada dos incentivos, adaptados aos novos modelos de negócio, temos a oportunidade de virar o jogo e chegar de igual para igual. Nossa presença no mercado internacional ainda é muito tímida. Temos muita coisa para conquistar. É fundamental que estejamos no mercado não só para atender as demandas dos players, e sim que sejamos nós mesmos players também. E para isso precisamos de dinheiro na mesa. Além disso, precisamos investir na cultura de cooperações internacionais. É hora de consolidarmos isso”.
Eduardo complementou: “Com dinheiro na mesa, temos capacidade de viabilizar projetos e reter a propriedade criativa – o que é muito importante para nós, produtores, e para o país, pois fortalece a nossa indústria criativa. O caminho passa por criar, reter e obter lucros futuros. Se tivermos apoio e financiamento público, isso acontece, e fazemos negócios melhores. Com essa mudança política, a consolidação disso é uma das nossas principais apostas”.
Gustavo, por sua vez, ressaltou que as políticas regulatórias precisam estar conectadas a tudo isso: “É uma oportunidade de conseguirmos reestabelecer o mercado para olhar pra frente e pensar o que podemos construir para sermos de fato um país com uma presença cultural e criativa que ainda não tivemos. E queremos fazer parte disso”. Nesse sentido, ele contou que a Boutique tem estabelecido modelos de coprodução internacional. Hoje, eles já atuam com co-desenvolvimento com países da Europa e da América Latina, além de Canadá e Estados Unidos. “Começamos a colocar de pé as nossas primeiras coproduções internacionais para o mercado de TV. São modelos de negócio que envolvem retenção de propriedade e, por isso, exploração da distribuição e controle criativo e de negócio. E que convivem no nosso portfólio com as prestações de serviço. Essa diversidade de modelos é fundamental”.
Abertura de departamento de longa-metragem
A empreitada com projetos de longas é uma das novidades que surgem com os dez anos de história da produtora, que atualmente trabalha com oito projetos no formato. “São todos projetos muito fortes, com roteiristas consagrados e novos talentos, sempre buscando esse equilíbrio. Queremos explorar esse mercado de longas mantendo o nosso DNA. Independente se a produção é de duas, oito ou 20 horas, nosso objetivo é contar histórias de amplo alcance e elevada qualidade artística, e sempre focando na diversidade. Esse é nosso tripé de atuação. Somos rígidos quando pensamos em como entregar a melhor experiência, a melhor história. A gente sempre olha primeiro para a história e, depois, pensa no modelo de negócio. Quando isso se inverte, se perde o foco, perde aquilo que te conecta com o projeto. Se não partimos da conexão emocional que temos com a história, fica difícil sustenta-la”, definiu Gustavo.
Projetos baseados em casos reais
No ano passado, a Boutique estreou projetos como “Flordelis: Questiona ou Adora” e “Rota 66: A Polícia que Mata”, ambas no Globoplay, e “PCC: Poder Secreto”, na HBO Max: todas produções seriadas baseadas em casos reais. “É um interesse que sempre tivemos. Numa minissérie ou longa assim, seja de ficção ou documental mesmo, conseguimos alcançar o público primeiro porque aquela história já é conhecida e normalmente as pessoas querem saber mais, e depois pela possibilidade de recontar a história a partir de outro ponto de vista. Muitas vezes, as pessoas conhecem só de maneira superficial. E aí temos a possibilidade de aprofundar e oferecer novos olhares em relação a esses acontecimentos. Recontar a história do nosso país, de casos que marcaram o imaginário da sociedade, é muito poderoso. Você lida com o que a audiência espera que venha e ainda oferece novas perspectivas. O público tem buscado muito essas histórias, e é um desafio contá-las sem cair na repetição de estigmas, representatividades ou pontos de vista que já foram explorados. Sempre fazemos esse exercício diante de histórias reais: entender o que temos para contar de novo, o que temos a contribuir e quais os motivos temos para que aquela história seja recontada”, explicou Gustavo.
“Que existe um interesse enorme, é nítido. Essas produções têm performado bem. E existe a performance de números e também de discussões em torno do assunto. Quando fizemos a série do PCC, por exemplo, a política pública de segurança virou pauta. Com o ‘Rota 66’, trouxemos uma novidade para além do livro, que é a perspectiva do jornalismo naquela época”, citou Gustavo. Eduardo complementou: “As histórias reais têm o poder de despertar rapidamente um sentimento de identidade, criam uma conexão rápida com o público”.
Outras produções e os investimentos em adaptações literárias
Recentemente, a Boutique lançou “Mila no Multiverso”, pioneira série teen brasileira de aventura e sci-fi, no Disney+. A série é dirigida por Julia Jordão e Jéssica Queiroz e produzida pela Boutique e Non Stop. A produção executiva é assinada por Tiago Mello e os roteiros foram escritos por Cássio Koshikumo e Janaína Tokitaka. “É um projeto muito bacana, onde criamos o processo todo, negociamos com a Disney e foi um acerto. É uma ficção científica, mas que conta com uma mensagem forte e traz diversidade”, comentou Tiago.
Entre os projetos que ainda não estrearam, um dos destaques é “O Negociador”, thriller policial protagonizado por Malvino Salvador, para o Prime Video. Com direção de Bel Valiante, a primeira temporada tem produção de Zasha Robles e Gustavo Mello, da Spiral International e Boutique, respectivamente. Na série, o capitão Gabriel Menck é um negociador da polícia e integrante do Grupo de Ações Táticas Especiais, que frequentemente é acionado para resolver situações de crise que acontecem nas ruas e são transmitidas ao vivo na TV, sob os olhares de um país inteiro. A produção acompanha o trabalho do capitão no enfrentamento de assalto a bancos, sequestros passionais, suicidas armados, ameaças terroristas e rebeliões em presídios.
Destacam-se ainda as adaptações de livros. A Boutique se prepara para lançar versões audiovisuais de sucessos como “Tudo é Rio”, de Carla Madeira; “O Mistério do Cinco Estrelas”, da série “Vaga-Lume”; e “O Gênio do Crime”, de João Carlos Marinho. “Existe uma diversidade de gêneros. São livros que marcaram época, têm muitos fãs e se destinam a diferentes públicos. São obras que já se provaram. E agora ganham novas versões, pois no audiovisual se cria outra coisa”, disse Tiago.
“Na hora de escolher em quais propriedades vamos investir, optamos por histórias envolventes, com potencial de adaptação, e autores e autoras que tenham vozes únicas e pontos de vista originais. O livro já traz uma vivência, um imaginário construído, coisas muito valiosas criativamente falando. Tem especificidade de personagens e de localização. Além da base de fãs, que é muito positiva pensando no lado comercial. Fazemos escolhas precisas. Os livros que escolhemos são aqueles que temos certeza que vão virar grandes séries ou filmes”, garantiu. “E quando possível, gostamos que os autores participem das adaptações. É importante que tenhamos autonomia, porque é outra obra, mas não podemos abrir mão do DNA da história. Nem tudo está no livro, por isso conversar com as pessoas que escreveram aquilo é muito rico, ajudam a entendermos qual caminho seguir. É desafiador, mas gostamos muito”, completou.
Perspectivas de futuro
Os sócios estão animados com o ano de 2023, que traz uma perspectiva grande de crescimento, pensando nos acordos já fechados, e nas possibilidades de trabalharem nesse novo momento do Brasil e do mercado. “Estamos em contato com associações e governo pois é fundamental alcançarmos não só o público brasileiro. A gente batalha muito para levantar nossas produções. Temos de inundar o mercado internacional com as nossas séries – temos potencial criativo e organização de produção para isso. Precisamos de menos burocracia, de uma liberação de recursos mais rápida e da regulamentação do streaming. O FSA hoje quase não pode usar o streaming como primeira janela porque não é regulamentado. Também precisamos passar pela reorganização da TV pública, das relações com a TV fechada, com a cota de tela nos cinemas. São coisas muito básicas, mas que precisam ser feitas”, apontou Tiago.
“É um momento positivo de retomada que, ao mesmo tempo, é decisivo: ou teremos mais autonomia, dinheiro na mesa e novos modelos de negócio ou ficaremos reféns de decisões econômicas e financeiras dos centros de produção mundiais. Precisamos de um modelo econômico que se sustente. Com a mudança de governo e da política cultural, é hora de nos consolidarmos como país produtor e autônomo”, acrescentou Eduardo.
“Desburocratizar, agilizar e atualizar: essas são as palavras. Como empresa e como setor, temos o compromisso de entregar resultados – artísticos, sociais e de audiência. Nós sabemos como fazer e temos como crescer e muito, mas precisamos estar amparados”, concluiu Gustavo.