Criada e gerida por quatro mulheres, Daza Filmes produz novos longas de ficção, documentários, séries e animação

Carol Benjamin, Rita Toledo, Leandra Leal e Maria Barreto (Foto: Jorge Bispo)

A Daza Filmes é uma produtora independente, criada e gerida por mulheres desde 2010, que trabalha especialmente com filmes de arte, séries para streaming e documentários políticos. Entre os principais projetos da empresa carioca que reúne as sócias Carol Benjamin, Leandra Leal, Maria Barreto e Rita Toledo, estão os premiados documentários "Divinas Divas" e "Fico Te Devendo Uma Carta Sobre o Brasil", além da série "A Vida Pela Frente", que estreou no último mês de junho no Globoplay

"Um dos motivos de termos nos juntado para criar uma produtora foi com certeza o fato de que nós quatro somos mulheres. A gente sentia a necessidade de se apoiar nos nossos projetos autorais e sentimos que tendo uma produtora gerida por mulheres seria mais fácil. Quando criamos a Daza, essa questão não tinha a força que tem hoje e que tem que ter sempre, isto é, esse espaço de discussão. Caminhamos bastante de lá pra cá, mas ainda falta muito quanto olhamos para a produção audiovisual e o percentual de homens na direção na comparação com mulheres. Existem muitas narrativas e pontos de vista que só as mulheres podem trazer e que ainda não foram explorados. Essa é das missões que trazemos desde o início", pontuou Leandra Leal, sócia-fundadora, atriz e diretora, em entrevista para TELA VIVA. 

"Acho que de 2010 para cá o que mudou na verdade foi a nossa tomada de consciência da desigualdade e da grande diferença que existe na forma que os homens se comportam, são recebidos e enxergados na direção e criação do audiovisual em comparação com as mulheres. A gente se tornou – nós todos enquanto sociedade, indústria, mulheres – mais conscientes. A percepção mudou. E certamente, com isso, transformações começam a acontecer. Mas ainda temos muitos desafios. Esse lugar da direção, da criação e de chefia ainda é exercido de forma muito mais confortável pelos homens – eles se sentem muito bem nessa posição e a sociedade, as produtoras e os canais também consideram mais confortável ter um homem na liderança. Isso é visível. Mulheres estão acostumadas a serem vistas como objeto de desejo – e não afirmando seu desejo. E como diretora você precisa afirmar o seu desejo o tempo todo. As mulheres querem muito mais exercer esse lugar hoje em dia, mas ainda é muito difícil", completou Rita Toledo, que também é uma das sócias-fundadoras da produtora. 

Nesse caminho em busca de um cenário de maior igualdade no audiovisual, Carol Benjamin, que completa o trio de fundadoras da Daza, chama a atenção para o viés político da questão: "Nós caminhamos nos últimos anos em direção a uma tomada de consciência em relação a desigualdades estruturais na nossa indústria. Mas na mesma medida em que essa percepção ficou mais nítida, o desmonte que sofremos nos mecanismos de acesso ao Fundo Setorial do Audiovisual durante os últimos dois governos dificulta a seleção e o financiamento de projetos de mulheres hoje". 

Ela prossegue: "Isso acontece porque todo o sistema é moldado para a concentração do dinheiro entre grandes players da indústria – ou seja, para a conservação de um sistema de pensar e fazer filmes que só privilegia homens, e só aqueles brancos e cisgêneros. A atual gestão da Ancine precisa rever com urgência os critérios de acesso ao Fundo, e poderia começar analisando as chamadas públicas que já existiam antes, como o antigo Prodecine 5, por exemplo, que era voltado para obras com mais potencial artístico e menos comercial, e atualizar o modelo com linhas específicas para documentários e novos realizadores. Soma-se a isso a necessidade de criar mecanismos de indução à diversificação das autorias, em todas as linhas, com critério diferenciado de pontuação para projetos dirigidos/criados não só por mulheres, mas por pessoas pretas, indígenas e da comunidade LGBTQIA+". 

Transformações de mercado 

Desde 2010, quando a produtora surgiu, muitas mudanças aconteceram – os hábitos de consumo do público se transformaram; as transições de governo impactaram diretamente a produção audiovisual nacional; novas janelas surgiram e cresceram, como as plataformas de streaming; e mais recentemente a pandemia, que atingiu o setor de forma intensa. 

Nesse sentido, Rita, que também é roteirista, contou que, em 2015, fez um mestrado no AFI (American Film Institute), como bolsista, já tendo em mente as transformações que estavam por vir. "Já percebia que o streaming e a força dessas narrativas, que estavam crescendo primeiro nos Estados Unidos e na Europa, obviamente ia chegar ao Brasil também. 'A Vida Pela Frente' foi uma série gestada ali, por volta de 2012, 2013, justamente a partir desse interesse, acreditando que isso era uma coisa possível. Tivemos essa percepção de que a televisão ia mudar no Brasil. Meu interesse de ir estudar fora foi por acreditar que estávamos, naquele momento, engatinhando para pensar uma televisão diferente da novela, com outro tipo de narrativa, mais ágil, diferente. Levei o projeto comigo e trabalhei com ele lá, com meus professores. Inclusive conheci o Victor Nascimento, que é um dos roteiristas da série, lá. A gente teve essa percepção de que as coisas iam mudar – e a gente tinha que acompanhar. E ainda estão mudando. É um processo", analisou. 

Diante do cenário atual, Leandra afirma que o que a produtora busca é um equilíbrio: realizar projetos autorais e, ao mesmo tempo, dialogar com o mercado: "Nossos projetos têm uma raiz muito pessoal – até os que não são de autoria nossa trazem temas que nos tocam. Mas a gente também quer se comunicar, levantar pautas e discussões, e que isso também atinja um público maior. Temos projetos de filmes de arte, mas também séries de TV e filmes de diferentes perfis. O que nos norteia é um lugar de identificação com nossos ideais, valores e o que queremos trazer para o mundo de discussão e transformação. Esse é o lugar que queremos explorar, e é claro que queremos fazer isso na maior potência possível". 

Rita complementou: "Buscamos histórias que nos toquem, que tenham uma relação com a gente, com quem nós somos e com o que acreditamos. Temos muito esse perfil. Não pegamos projetos só porque eles tenham viabilidade comercial, por exemplo. Somos mulheres muito interessadas nas transformações do mundo e nas questões sociais. Falamos de tabus, de coisas que são difíceis e que possam ser incômodas. Gostamos de temas que fazem as conversas na sociedade avançarem". 

Liz (Nina Tomsic) e Beta (Flora Camolese) em "A Vida Pela Frente" (Foto: Divulgação/ Globoplay)

"A Vida Pela Frente"

Diferentes gerações se encontram em "A Vida Pela Frente", série Original Globoplay lançada em duas partes entre os meses de junho e julho. Leandra Leal, Rita Toledo e Carol Benjamin são as criadoras da obra, produzida por Maria Barreto. Dirigida por Leandra Leal e Bruno Safadi, conta com supervisão de roteiro de Lucas Paraizo. Ambientada na virada do milênio, entre 1999 e 2000, no Rio de Janeiro, a trama mergulha em seus dez episódios nessa volta ao tempo repleta de referências pop e aborda temas muito atuais ao debater saúde mental, responsabilidade afetiva, romance, luto, sexualidade, drogas, diversão, festas, pertencimento e descoberta da homoafetividade. Na trama, Beta (Flora Camolese), Cadé (Jaffar Bambirra), Marina (Muse Maya), Vicente (Henrique Barreira) e JP (Lourenço Dantas), amigos que estudam juntos, são impactados com uma novidade: Liz (Nina Tomsic), uma menina tímida e enigmática que entra na escola e, mesmo sem intenção, movimenta as relações entre os jovens com sua chegada. 

A série traz elementos e referências vivenciadas na adolescência pelas próprias sócias da Daza – que são amigas desde o colégio – e estão todas envolvidas no projeto. "Acredito que numa produção audiovisual seja inevitável que as vivências das pessoas se reflitam na história. É claro que, nesse projeto, trouxemos vivências muito pessoais nossas e dos roteiristas que trabalharam com a gente também. É engraçado que fomos para uma especificidade muito grande, uma escola na Zona Sul do Rio de Janeiro entre os anos de 1999 e 2000, e muitas pessoas se identificaram. São questões específicas de personagens que estão vivendo dramas que, por serem muito baseados em histórias que a gente viu ou viveu diretamente, têm uma realidade. Buscamos muito esse encontro com o real, mas sem idealizar a adolescência ou romantizar. Quando você faz algo muito particular, com verdade, as pessoas acabam se identificando e se enxergando naquilo, e isso é muito legal", disse Rita. 

A produção se passa entre os anos de 1999 e 2000, mas aborda temas muito atuais – inclusive assuntos que, naquela época, eram tratados de forma diferente, e alguns nem sequer eram postos em debate. "Desde o início da criação tínhamos essa preocupação de olhar para esse período da adolescência mas a partir das adultas que somos hoje. Falamos muito sobre o tempo atual quando estamos falando do passado. O elenco trouxe um primeiro elo geracional muito grande – a visão deles, os estranhamentos que sentiam em relação à época. Esse primeiro processo já foi muito positivo. Mas acreditamos também que a adolescência, apesar das particularidades de cada época, de cada classe, tem coisas que são comuns, que atravessam essa experiência. A entrada na vida adulta, a apresentação aos primeiros sentimentos que vão te acompanhar pelo resto da vida, as crises de identidade… A partir de vivências nossas, conseguimos nos comunicar com pessoas que tiveram diferentes experiências", avaliou Leandra. 

Audiovisual como ferramenta de mudança 

Todas as sócias da produtora enxergam no audiovisual uma potência de debate, transformação e diálogo. "É um meio valioso na criação de pontes e empatia, no exercício de se colocar no lugar do outro. Quando você assiste a uma série ou um filme, é transportado para realidades diferentes da sua e, envolvido com a trama, consegue identificar os sentimentos e se colocar nesse lugar, mesmo que não tenha vivido exatamente aquilo que está na tela. Acho que o melhor atalho para a transformação é a emoção. Não tenho a pretensão de que um filme que eu faça vá transformar o mundo, mas ele pode transformar pessoas, e essas pessoas vão transformar o mundo. Uma das minhas maiores motivações é tocar as pessoas nesse lugar", definiu Leandra.  

"A necessidade de contar histórias é algo inerente ao ser humano. E não é de hoje que o audiovisual foi percebido como uma ferramenta poderosíssima para a construção de imaginários, para forjar identidades, para revisitar o passado, registrar o presente e ensaiar o futuro. Então se conectar com o mundo à nossa volta está na essência do que a gente faz. A gente precisa andar sempre com a sensibilidade afiada para captar temas relevantes que ainda não foram devidamente esmiuçados ou percebidos como tais. Este tipo de audiovisual que a gente faz, em longas e séries autorais, são projetos gestados por alguns anos e inevitavelmente passam por um longo caminho até chegar às telas. E é necessário que, quando cheguem, sejam recebidos como relevantes aos debates, que conversem com o público, que se conectem com a agenda contemporânea. Mas que também tenham cauda longa, o que só é possível quando você não tem a pretensão de encerrar questões ou finalizar o debate sobre qualquer temática", refletiu Carol. 

Próximos projetos 

Por fim, Maria Barreto, que também é uma das sócias da Daza, falou sobre os próximos projetos da produtora: "Temos dois longas-metragens em etapa avançada de produção e que serão lançados no ano que vem. Um é o documentário da Leandra chamado 'Nada a Fazer', que fala de uma relação mãe e filha de forma poética, no caso a Leandra e a Ângela Leal. O outro é o longa de ficção 'Insubmissas', que é um projeto da Carol. Temos outros projetos em etapas avançadas de desenvolvimento também, entre eles duas séries de ficção: 'Os Batalha', de criação da Leandra, é uma série de comédia dramática que se passa nos bastidores de um teatro nos anos 1960; e 'CAPS' (nome provisório), criada pela Rita, uma série dramática que acompanha uma equipe de profissionais de saúde mental lidando com os desafios de tratar seus pacientes em uma unidade de saúde pública no Rio de Janeiro. Temos também dois documentários em produção: 'Memórias do fim do mundo', com direção da Carol, em coprodução com a Videofilmes e a Muiraquitã Filmes; e o documentário 'Morro Grande', dirigido pela Rita com a Isabel Joffily, uma coprodução com a Coevos Filmes que ganhou o prestigiado fundo holandês Bertha Fund e foi selecionada para participar do laboratório de projetos IDFA Project Space, em Amsterdam. Também destacamos uma nova parceria da Leandra com o Bruno Safadi, que vão dirigir juntos um longa de ficção com roteiro da Rita; e, ainda, a aventura que será explorar o mercado de animação com o longa 'Tina e Tão Tão', cujo argumento é adaptado a partir de uma peça de teatro escrita pelo dramaturgo Pedro Kosowski". 

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