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Greve dos roteiristas nos EUA: o que realmente foi negociado e impactos para o futuro da indústria audiovisual

Após 148 dias parados, as engrenagens voltaram a rodar. Frente à segunda maior greve da Writers Guild of America (WGA) desde sua criação, roteiristas e os principais produtores de conteúdo do mundo (reunidos na Alliance of Motion Picture and Television Producers – AMPTP) superaram os impactos da pandemia de covid-19 e enfrentaram desafios decorrentes das grandes mudanças no mercado desde o surgimento do streaming.

Graduada em Direito pela FGV DIREITO SP com passagem pela University of Southern California (USC) e University of California Berkeley (UC Berkeley). Atualmente, integra a equipe de Clearance do escritório e desenvolve pesquisa nas áreas de Direito do Entretenimento, Direitos Autorais, direitos da personalidade, liberdade de expressão e novas mídias, além de legal design. Foi pesquisadora bolsista do Programa de Iniciação Científica da FGV com enfoque em Direito e Arte e pesquisadora do Programa de Introdução à Pesquisa do Centro de Ensino e Pesquisa em Inovação da FGV (CEPI-FGV). Durante a graduação, fundou o Grupo de Estudos de Direito do Entretenimento, Mídia e Cultura da FGV (DEMC FGV) e o Centro de Assistência Jurídica Saracura (CAJU FGV), responsável por prestar assistência jurídica gratuita à comunidade do Bixiga (São Paulo).

Para além de discursos de vitória e retórica típicos de negociações de natureza sindical, ficou claro, desde o início, que o que diferencia esta negociação de outras tantas realizadas de tempos em tempos entre profissionais do audiovisual e estúdios produtores eram especificamente dois temas, representando o cerne das preocupações de ambos lados: a emergência do streaming como meio relevante de distribuição de conteúdo audiovisual, impactando diretamente a dinâmica tradicional de remuneração de escritores, de um lado; e a utilização de inteligência artificial generativa para a criação de argumentos, roteiros e até mesmo possibilitando a utilização da aparência de atores e atrizes no processo de produção de obras audiovisuais, de outro.

Não queremos aqui afirmar que os demais pontos em negociação – jornada de trabalho, composição de mesas de roteiro, remuneração mínima etc. – sejam menos importantes no âmbito do acordo mínimo (“minimum bargaining agrément”, ou MBA). Não há dúvida, porém, de que foram as questões relacionadas aos residuals (ou participações) derivados da disponibilização por streaming (em todas as suas modalidades), assim como o tema da utilização de IA generativa, que levaram as partes a impasse tão duradouro.

Neste sentido, é válido indagar: quais realmente eram as preocupações de ambos os lados quanto a estes pontos? O que realmente foi negociado? Como o acordo a que chegaram as partes impactará a produção e difusão digital de conteúdo audiovisual daqui para a frente?

Inteligência Artificial e Inteligência Artificial Generativa

Os recentes desenvolvimentos em modelos de linguagem ampla (ou “LLM”, em inglês) obviamente trouxeram indagações a respeito do seu uso na indústria do entretenimento. Afinal,

com eles torna-se possível produzir textos complexos com pequenas e rápidas solicitações (“prompts”), utilizando-se de bases extensas de conteúdo e conhecimento existentes na internet (muitas vezes protegidas por direitos de propriedade intelectual). As preocupações quanto ao uso de inteligência artificial generativa (IAG) nas indústrias criativas, até o momento, tem se concentrado no binômio ‘input-output’, isto é, nas implicações decorrentes da utilização de materiais de terceiros como base para criações futuras (input) e naquelas decorrentes da autoria e titularidade sobre materiais criados pela própria IAG (output). Adicionalmente, há também preocupações relacionadas à utilização de aplicações de IAG em atividades operacionais e analíticas, pelas próprias empresas de entretenimento, relacionadas ao tratamento de dados de consumo, audiência e outros processos inerentes à atividade empresarial dos estúdios.
De maneira assertiva, o MBA endereça os temas citados acima, deixando claro, dentre outras provisões, que:

José Maurício Fittipaldi, sócio do CQS/FV Advogados Premiado em rankings e diretórios jurídicos como advogado líder no setor de mídia e entretenimento, José Maurício Fittipaldi possui 20 anos de experiência nestes setores como advogado e como executivo. Com participação em diversos conselhos e órgãos de representação setorial como o Conselho de Gestão da TV Cultura, Conselho Superior de Cinema e Conselho Nacional de Combate à Pirataria, atualmente é o presidente da Comissão de Mídia, Entretenimento e Cultura da Ordem dos Advogados do Brasil, Secção São Paulo.
  • Escritores contratados não podem ser obrigados a utilizar aplicações de IAG, mas poderão utilizá-las apenas se autorizados pelo contratante, e desde que sigam as políticas de IAG destes no que se refere a: questões de ética, privacidade, proteção de dados, segurança, possibilidade de proteção autoral ou outro tipo de proteção de direitos de propriedade intelectual, entre outros;
  • Estúdios deverão informar aos roteiristas quando qualquer material a eles apresentado como base para o trabalho houver sido elaborado por aplicação de IAG, assim como os Estúdios se reservam o direito de utilizar quaisquer ferramentas para detecção de plágio nos textos produzidos pelos roteiristas, em especial quando mediante utilização de IAG;
  • Ao mesmo tempo, fica consignado que aplicações de IA não são considerados “autores” de qualquer material escrito, portanto também insuscetíveis a qualquer tipo de crédito ou referência (ou participação residual);
  • O MBA possui uma interessante disposição conferindo aos roteiristas uma espécie de “direito de veto”, a ser exercido eventualmente em momento futuro, quanto à utilização dos roteiros produzidos para treinamento e aprimoramento de sistemas de IAG.

De forma igualmente relevante, o MBA expressamente estipula que as determinações do acordo se referem à produção de roteiros e outros textos criativos, mas não se relaciona a outras aplicações de inteligência artificial em processos operacionais ou analíticos realizados pelos produtores de conteúdo. Este ponto nos parece fundamental, pois o emprego de IA e IAG pode ir de fato muito além da produção de textos e roteiros e revolucionar a própria forma como dados são analisados, empresas são geridas e decisões são tomadas, e as empresas produtoras de conteúdo estão livres para utilizá-las conforme sua necessidade e conveniência.

Participações Residuais (‘Residuals’)

O tema da participação de roteiristas nas receitas decorrentes da exploração comercial das obras produzidas é antigo, e um sistema de pagamento de participações residuais é aplicado há bastante tempo. Ocorre, no entanto, que este sistema foi abalado pela disponibilização digital das obras por meio de serviços de streaming (ou vídeo sob demanda), nas suas diversas modalidades. O streaming alterou fundamentalmente o modelo de exploração comercial de obras audiovisuais, colocando em xeque o modelo tradicional de exploração por janelas e licenciamento.

Enquanto tradicionalmente a participação residual de talentos tinha por base a receita auferida pela exploração das obras audiovisuais individualmente – em cada uma das janelas de exibição e licenciamentos feitos a outros serviços – o modelo de negócios no streaming inviabiliza a aplicação do sistema tradicional uma vez que o que é monetizado, essencialmente, são os catálogos e não obras audiovisuais individualmente.

Um dos principais desafios da indústria audiovisual nos últimos anos tem sido justamente como avaliar o valor de uma obra em específico no âmbito de um catálogo e, mais ainda, como atribuir a esta obra uma participação específica sobre as receitas gerais auferidas pelo serviço com um todo.

Neste ponto, o MBA foi especialmente inovador ao estabelecer novas métricas e sistema de avaliação do sucesso comercial das obras e consequente participação residual de roteiristas, com implicações profundas para o futuro da indústria.

Após o acordo, foi estabelecido um novo formato de residual; dessa vez, baseado na audiência dos conteúdos exibidos. Isto é, a partir de projetos lançados após 1º de janeiro de 2024, quanto maior a audiência, maior será o “bônus” concedido. Nesta mesma esteira, os principais players do mercado concordaram em adotar novas políticas de transparência em relação aos dados de streaming. Ainda que sujeito a um acordo de confidencialidade, a WGA terá acesso ao número total de horas transmitidas – em nível nacional e internacional de qualquer tipo de programa (incluindo os “originals”).

Para além da previsão de residuals com base na audiência, outras novas possibilidades de pagamentos do bônus incluem: (i) a previsão de aumento para os residuals referentes aos conteúdos explorados internacionalmente; (ii) a possibilidade de que obras audiovisuais assistidas por 20% ou mais dos assinantes domésticos de uma determinada plataforma de SVOD nos primeiros 90 dias de lançamento permitirá outro aumento dos residuals para os roteiristas; e (iii) a possibilidade de que programas AVOD de alto orçamento – até então sujeitos ao pagamento de residuals – submeter-se-ão aos mesmos termos e condições de projetos elaborados para mídias tradicionais.

Como podemos ver, a negociação realizada entre roteiristas e produtores demanda maior nível de transparência em relação à audiência das obras disponibilizadas, inclusive em relação aos serviços financiados por publicidade (AVOD) ou sistemas mistos.

Impactos das Negociações

Aplicáveis a partir de janeiro de 2024, as disposições do MBA certamente permitem antever algumas mudanças importantes no cenário da indústria audiovisual para anos vindouros.

No que se refere à dinâmica de cálculo e pagamento de residuals, é possível antecipar um processo de definição de métricas de desempenho de obras audiovisuais. Métricas relevantes de audiência e engajamento certamente serão objeto de maior informação e detalhamento, não sendo impossível que vejamos a adesão de diferentes serviços a processos de autorregulação e uniformização destas métricas – como já havia nos serviços de mídia tradicional por meio da medição de audiência, cálculo de bilheteria etc.

Referido processo, inclusive, atende a necessidades específicas dos negócios baseados em publicidade, caminho cada vez mais trilhado por serviços de streaming audiovisual – seja nos serviços de vídeo sob demanda ou nos serviços lineares fornecidos por meio de dispositivos de TV Conectada (FAST e outros). Ao mesmo tempo, mais informação e detalhamento quanto a audiência e engajamento podem também modificar a forma pela qual projetos são avaliados e mesmo negociados.

No que se refere ao uso de IA e IAG, é possível afirmar que o acordo garante diretrizes bastante claras sobre o uso de IAG na produção de conteúdo, até mesmo de maneira mais objetiva do que muitos analistas e players da indústria poderiam prever no início das negociações, dado o grau de indefinição quanto ao potencial e limites da tecnologia.

Mesmo apresentando uma linha definida e equilibrada para o desenvolvimento da indústria audiovisual, não é possível afirmar, contudo, que as diretrizes do MBA conferirão proteção integral de produtores e roteiristas em um mundo em constante mutação. Não é possível negar, a esta altura do desenvolvimento tecnológico, a concorrência cada vez mais acirrada entre serviços fornecidos pelos grandes produtores de conteúdo (aos quais o MBA se aplica) e aqueles baseados em conteúdos gerados por usuários, em relação aos quais as diretrizes do MBA não se aplicam e que, certamente, verão um crescimento exponencial de conteúdo gerado por inteligência artificial.

Neste particular, a pergunta que remanesce é: o que ocorrerá se os ganhos de produtividade e qualidade proporcionados pela IAG permitirem aos serviços de conteúdo gerado pelos usuários uma vantagem comparativa insuperável? Ao mesmo tempo, como será a competição entre conteúdos produzidos pela criatividade humana e aqueles produzidos por IAG em um mundo no qual o estágio de desenvolvimento tecnológico tornará impossível distinguir visualmente um do outro?

Obviamente, são questões que transcendem o âmbito da negociação do MBA e que certamente estarão na pauta de discussões sobre a própria regulação do uso de IA nos próximos anos.

2 COMENTÁRIOS

  1. Desde o inicio da civilizacao humana que diversas tarefas criativas foram sendo gradativamente substituidas por maquinas (um exemplo é a industria de vestuario), o que acelera e barateia substancialmente os processos de producao, tornado-os mais acessiveis a todos. Do ponto de vista de consumidor, considero que seria muito bem vindo se os processos de criacao na industria do entretenimento pudessem ser automatizados, principalmente para eliminar as maiores despesas (como artistas que ganham dezenas de milhoes de dolares para fazer um mero filme). Isso ajudaria a tornar o acesso a esse entretenimento mais barato.

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