"Esse acervo dos Racionais é raro e é ouro", diz Juliana Vicente, diretora do documentário da Netflix sobre o grupo de rap

No último dia 16 de novembro, estreou na Netflix o documentário "Racionais: Das Ruas de São Paulo pro Mundo", que conta a trajetória do grupo mais influente do rap nacional. Dirigido por Juliana Vicente, a produção mostra a origem e a ascensão dos Racionais MC's, formado por Mano Brown, KL Jay, Ice Blue e Edi Rock. O longa ainda apresenta cenas inéditas gravadas ao longo dos mais de 30 anos de carreira do grupo e entrevistas exclusivas, além de reforçar o impacto e o legado dos músicos desde os primeiros shows nas ruas de São Paulo até os dias de hoje.

"Poder encontrar os Racionais na minha vida foi importante. Eu me tornei fã primeiro das pessoas e, depois, da obra. O processo de produção foi intenso e levou muito tempo – estou trabalhando com os Racionais há dez anos, contando o clipe do Marighella (a música 'Mil Faces de um Homem Leal'), com o qual ganhamos o prêmio de melhor videoclipe do ano no VMB. Foi uma experiência incrível poder trocar com outros artistas negros, o que eu tinha experienciado muito pouco até então", contou a diretora e produtora executiva Juliana Vicente em entrevista exclusiva para TELA VIVA. 

Na época do videoclipe citado por Juliana, por volta de 2012, ela estava circulando por laboratórios de desenvolvimento de projetos internacionais, como o EAVE – Puentes, que afirma ter sido muito importante para uma posterior abertura para coproduções internacionais na Preta Portê Filmes – produtora que fundou -, como o "A Terra e a Sombra", que foi premiada quatro vezes em Cannes em 2015. "Eu estava vivendo um universo muito diferente. Durante todo esse processo, a Eliane Dias assumiu como empresária dos Racionais. Com isso, acabei indo filmar a turnê dos 25 anos do grupo, que só teve shows em casas enormes. Foi uma mudança para eles e eu tive a oportunidade de vivenciar isso de perto. Muitas coisas aconteceram nesses anos dentro da Preta, no mundo e nos Racionais, e a gente estava perto, trocando ideia sobre tudo isso", relembrou. 

O documentário traz passagens da trajetória de mais de 30 anos de carreira dos Racionais – por isso, escolher o que entraria no material final e o que ficaria de fora foi um dos maiores desafios de produção. "Além disso, também foi desafiador equilibrar as vozes dos quatro integrantes, mergulhar em mais de 300 fitas VHS e estar atenta ao que está acontecendo no mundo para construir uma narrativa à altura do grupo e que pudesse, com sorte, expandi-lo ainda mais. O acesso a materiais de arquivo no Brasil é complexo, sobretudo da história preta, porque eles não estão com a gente, estão na mão de instituições que nem sempre se importam a nos ajudar a contar nossa própria história – uma vez que os nossos não tiveram, em sua imensa maioria, a possibilidade de se registrar. Esse acervo dos Racionais é raro e é ouro", pontuou. 

Logo na estreia, o filme entrou para o Top 10 global da Netflix e ocupou o primeiro lugar entre os conteúdos mais vistos da plataforma no Brasil. "A gente trabalhou muito para isso e está acontecendo. Acredito que o público está se enxergando dentro do filme. Estou recebendo muitos relatos de pessoas bastante diversas entre si e que, mesmo assim, se enxergaram nele. Acho que quando a gente é honesto e preserva a humanidade dos personagens o mundo pode se identificar com eles. O mercado é que enxerga tudo como nicho, mas acredito que seja mais uma proteção de um espaço de privilégio do que uma verdade comprovada. Taí, Wakanda e Racionais fazendo tanto barulho no mundo", analisou. 

Com produção da Preta Portê Filmes para a Netflix, "Racionais: Das Ruas de São Paulo pro Mundo" tem direção de Juliana Vicente, que assina a produção executiva com Beatriz Carvalho e Gustavo Maximiliano. A direção de fotografia é de Flávio Rebouças, Rodrigo Machado e Carlos Firmino e a montagem é assinada por Washington Deoli e Yuri Amaral. Já a direção de arte é de Isabel Xavier e a direção de produção de Camila Abade e Mari Santos.

Assista ao trailer: 

Diversidade no audiovisual 

Juliana acredita que existe uma mudança em curso em prol de uma produção audiovisual mais diversa e menos desigual – tanto nas narrativas quando nos profissionais empregados na frente e atrás das câmeras, especialmente ocupando cargos de liderança. Mas, para ela, o cenário ainda está bem longe de ser o ideal. "Muitas empresas não conseguem entender que não se trata de colocar apenas uma pessoa lá no meio. Isso não ajuda tanto porque você provavelmente não terá a pessoa em sua melhor performance – o ambiente hegemônico é muito opressor na maioria das vezes e o isolamento de um ou dois no meio de tudo isso não incentiva a pessoa a se expor de forma livre, vira um esforço para se adaptar e dominar a linguagem, o que poderia ser solucionado por uma equipe verdadeiramente diversa, que exige o desenvolvimento de uma linguagem comum que, qualitativamente será refletida no que está sendo produzido", explicou. "A equipe de filmagem dos Racionais foi majoritariamente preta, embora seja uma equipe absolutamente diversa de ponta a ponta do processo, e acho que isso agrega ao filme", acrescentou.

A produtora e diretora apontou ainda que a chegada das plataformas contribuiu para essa mudança: "O VOD é o vídeo sob demanda – logo, as demandas ficam mais claras. Antes, o conteúdo não era escolhido pelo espectador, então a diversidade ficava suplantada pelo desejo da manutenção de um pensamento mais hegemônico que, inclusive, conduziu o mundo para esse monte de coisa que está errada, de questões humanitárias até climáticas, está tudo ligado a desconhecer a diversidade do nosso planeta. Os streamings pagos beberam nessas plataformas abertas, como o YouTube, que escancarou uma necessidade das pessoas se verem e de consumirem conteúdos que trouxessem algo novo e profundo na valorização da alteridade. Nesse caso, como são empresas que visam o lucro, ainda que de alguma maneira a hegemonia do discurso seja majoritária nos conteúdos, não tem como ignorar o poder das narrativas pretas, por exemplo, porque elas têm alcance e geram debate – tudo o que qualquer player quer num momento no qual as redes sociais são o maior palco do marketing para os conteúdos". No comparativo entre janelas, Juliana avalia: "A TV ainda é um pouco apegada porque ela dialoga com o conservadorismo. Na verdade, ela resguarda o conservadorismo na medida que não quer perder audiência. Mas, mais do que isso, eu acredito que existe mesmo um medo de mudança, porque isso provocaria uma necessidade de alterar a estrutura para alcançar o que precisa ser alcançado em termos de debate e entretenimento feito e pensado em um país majoritariamente preto. Não seria e não é apenas sobre representatividade na tela – é uma forma de pensar, são as posições-chaves de criação e decisão que estão em disputa, e disso ninguém quer abrir mão". 

Ainda nesse caminho, ela conclui: "A perspectiva de que se conta a história é importante. Nós tivemos durante muito tempo – e às vezes, ainda temos – nossa história contada pelos olhos dos outros, o que historicamente nos estereotipou e construiu um imaginário com consequências bastante duras. Existe uma necessidade de renovação neste olhar que só pode ser alcançado mudando a perspectiva de quem conta a história. Nós temos muitas histórias e estamos aptos a contá-las. Não há razão alguma para ser diferente disso, embora muitos ainda insistam. Espero que o futuro do audiovisual seja efetivamente plural, acessível e que dê conta de implodir esses imaginários que foram construídos até esse momento e que sejamos agentes de uma nova era a partir de construções mais humanas e diversas". 

Projetos da produtora 

A Preta Portê Filmes está em meio aos lançamentos de dois longas: "Racionais: Das Ruas de São Paulo pro Mundo", já disponível na Netflix, e "Diálogos com Ruth de Souza", com o qual Juliana ganhou o prêmio de Melhor Direção de Documentário no Festival do Rio, onde o filme fez sua estreia. No primeiro semestre de 2023, o título será lançado nos cinemas, com distribuição da Preta Play, distribuidora própria da produtora. 

"Estamos ainda em pós-produção de "Libélulas", novo longa de ficção do meu parceiro, o diretor René Guerra, e desenvolvendo séries de ficção e documentais. Eu, como diretora, estou focada no 'Cores de Maio', meu projeto de ficção, que é de certa forma uma continuação do meu primeiro curta, 'Cores e Botas'. Vem muita coisa por aí", finalizou Juliana. 

(Foto: Raquel Espírito Santo / Netflix) 

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