Para o setor, cota de tela para filmes nacionais no cinema cria ambiente mais adequado de concorrência

(Foto: Pexels)

O ano de 2024 começou com boas notícias para o setor audiovisual. Já neste mês de janeiro, o presidente Lula sancionou sem vetos o PL nº 5.497/19 da Câmara, que recria as cotas de exibição de filmes nacionais nas salas de cinema e prorroga o mecanismo até 31 de dezembro de 2033. Lula também sancionou, sem vetos, o PL nº 3.696/23 do Senado, que dispõe sobre a prorrogação das cotas de programação nacional na TV por assinatura, que passam a valer até 31 de dezembro de 2038. 

As leis necessitam de regulamentação específica pela Ancine. Além de ser consultada, a entidade terá suas competências ampliadas para fiscalizar entidades representativas que produzem, distribuem e comercializam obras cinematográficas e videofonográficas em relação ao cumprimento das medidas estabelecidas. E conforme noticiamos na última segunda, 29, a Ancine já deu início aos processos internos, como estudos e análises de mercado, necessários para a regulamentação da Cota de Tela Cinematográfica. Também foi deliberada pela diretoria a realização de oitivas com representantes dos mercados de produção, distribuição e exibição. Em entrevista para TELA VIVA, o presidente da Agência, Alex Braga, previu que a Cota de Tela deve entrar em vigor ainda em abril deste ano. Segundo ele, as análises técnicas devem estar prontas no início de fevereiro e, ao longo do mês, devem acontecer as oitivas. A proposta de regulamentação deve ser enviada em março ao Ministério da Cultura. Após o processo, é necessária a publicação de decreto presidencial estabelecendo a regulamentação.

O reestabelecimento das cotas de tela de conteúdo brasileiro nas salas de cinema seria mais um impulsionador para a retomada do cinema nacional, que tem conseguido se recuperar pelas próprias pernas. Alguns lançamentos recentes, como "Minha Irmã e Eu", "Mamonas Assassinas – O Filme" e "Nosso Lar 2" têm conquistado bons resultados em bilheteria e atingido números que não eram vistos em títulos nacionais desde a chegada da pandemia de Covid-19. Para os profissionais do setor, não há dúvidas de que o mecanismo das cotas seja fundamental para a proteção do conteúdo nacional e para a garantia de uma competição minimamente mais justa frente aos produtos estrangeiros que, sem as cotas, chegam a ocupar mais de 70% das salas. 

A produtora Clélia Bessa (Foto: Mariana Vianna)

Estímulo para o público e oferta contínua 

"A sala de cinema é muito importante para o ecossistema do audiovisual. A economia do setor se torna mais frágil sem a exibição nas telas. E a cota nos ajuda a manter nossos filmes nas salas. Fazemos filmes para serem vistos, para tocar e alcançar o maior número de pessoas. A cota não é um pré-requisito do Brasil – ela existe em diversos outros países, visando a proteção do conteúdo nacional do ponto de vista econômico e também cultural, imagético e subjetivo, entre outros", afirmou Clélia Bessa, sócia da Raccord Produções e produtora do longa "Câncer com Ascendente em Virgem", previsto para ser lançado nos cinemas este ano, em entrevista para TELA VIVA. A produtora também destacou a importância de parcerias com as TVs, que divulgam os filmes nacionais que estão em cartaz, como é o caso da parceria que a TV Globo mantém com a Globo Filmes. 

Gustavo Mello, produtor executivo e sócio da Boutique Filmes, salientou que é fundamental que a cota de tela seja regulamentada rápido e passe a vigorar o quanto antes. "A excessiva concentração do mercado com títulos estrangeiros é preocupante. Enquanto países como a Coreia do Sul, que conta com cota de tela há 30 anos, tem um share de 15% de produções nacionais nas salas de exibição, o Brasil fechou o ano passado com cerca de 2%. É algo incompatível com a relevância e a história do nosso cinema", declarou.

"A programação das salas de cinema obedece uma lógica muito violenta da troca de filmes semana a semana, com enorme pressão das empresas internacionais e dos filmes blockbusters estrangeiros", analisou Roberto d'Avila, CEO da Moonshot. "A cota vem para reservar minimamente o espaço de programação nas salas e permitir que filmes brasileiros com potencial de mercado possam ser bem lançados, permanecer e se expandir. É uma ferramenta imprescindível e que já se mostrou muito valiosa ao longo do tempo. Mais do que estimular o público a assistir, diretamente, as cotas garantem que haja uma oferta contínua de filmes nas salas, protegendo a saída prematura de filmes que estão funcionando ou inibindo que o mercado seja monopolizado por mega lançamentos. Ao estarem disponíveis, o filme nacional volta a ser percebido pelo público como uma opção e voltará a ser consumido nas salas, como já vem acontecendo nas outras plataformas", apontou. 

Roberto d'Avila, da Moonshot (Foto: Divulgação)

Veronica Debom é roteirista, atriz e dramaturga. Para ela, sem as cotas, o que vale é a lei do mercado. "E a lei do mercado é a lei do mais forte, só que no caso é: quem tem mais dinheiro, ganha. E o cinema como parte da cultura é um direito nosso, não pode estar vulnerável à lei do mais forte. O audiovisual como um todo cria imaginário, desperta desejos. A pessoa que se reconhece na tela valoriza mais sua própria narrativa e valida sua existência. É claro que vivemos em um país carente de muitas coisas urgentes: saúde, segurança… Porém, a cultura é pilar fundamental de uma sociedade, e só a coloca como algo secundário aqueles que têm interesse na nossa dominação. A predominância americana não parece estar nem próxima de ser ameaçada, então acredito que quanto mais medidas desse tipo, melhor. A lei de cotas de tela é uma pequena proteção aos nossos direitos", refletiu. 

Ambiente adequado de concorrência 

André Carreira, produtor da Camisa Listrada, que produziu recentemente "Mussum, o filmis" (grande vencedor do Festival de Gramado de 2023), pontuou que o Brasil tem uma produção diversa e competitiva para as salas de cinema, mas que precisa encontrar um ambiente adequado de concorrência. "A produção para cinema demanda investimentos muito altos, tanto em sua realização quanto no lançamento. Os produtores e distribuidores assumem muitos riscos. Por isso, precisamos de uma garantia mínima de que o nosso produto vai ser tratado de igual para igual com o produto estrangeiro, que tenhamos espaço nas salas e sessões adequadas", defendeu. 

Nesse sentido, ele contou que, na época de lançamento de "Mussum", o filme perdeu 400 sessões para dar espaço para o show da Taylor Swift (que foi exibido nas salas de cinema), em horário nobre, no primeiro final de semana. Na segunda semana, o filme brasileiro foi colocado em sessões vespertinas em muitas das salas. "Isso para um filme que tinha feito a maior abertura do ano para filmes brasileiros em seu primeiro dia e que fez um investimento alto em P&A. Os exibidores sabiam disso. O filme com certeza teve a sua performance muito afetada pelas ações do circuito exibidor. Esse tipo de situação não deveria ocorrer. Espero que a implementação das cotas nos ajude a ter um mercado mais saudável nesse sentido. De outra forma, será cada vez mais difícil os produtores investirem em lançar nas salas de cinema os seus filmes e perderemos cada vez mais mercado para o cinema estrangeiro". 

A CEO da ELO Studios, Sabrina N Wagon, também acredita que a cota de tela cinematográfica é essencial. Ela argumentou: "Não adianta termos fomento da produção sem a possibilidade de distribuição. Num mercado cada vez mais concentrado, as majors, isto é, os grandes estúdios, têm um poder de negociação fortíssimo e, nesse cenário, o produto brasileiro realmente precisa da oportunidade de espaço para que o público possa assisti-lo". 

Debom avaliou: "Se por acaso o espectador tiver curiosidade, pelo menos há um filme nacional disponível, não é? Se deixar o mercado se autorregular, não sobraria nada diferente de blockbuster americano nas salas. É como pensar em um produto físico no mercado: se ele estiver em uma prateleira mais baixa, fora do campo de visão, vai vender menos. Caso não tenha o produto em nenhum mercado, ele nunca pode ser consumido". A roteirista ainda acrescentou: "E na ponta de cá, se é obrigatório que haja conteúdo nacional no cinema, então haverá investimento para que esses filmes sejam produzidos. Garante empregos, roda a economia". 

André Carreira, da Camisa Listrada (Foto: Divulgação)

Importância da grade de horários 

Carreira reforça que não adianta colocar um filme nacional em cartaz com uma sessão por dia, às 13h, e dizer que ele não performou. "Precisamos de uma garantia de que nossos filmes tenham um circuito de estreia adequado, que o público tenha opções de horários. E, caso o filme tenha uma performance adequada para aquele circuito, que lhe seja concedida a dobra com um número de sessões em horário nobre. Isso é o mínimo que esperamos quando fazemos um alto investimento em um produto para o mercado", ressaltou. 

Gui Cintra, roteirista, diretor e sócio da agência de entretenimento e produtora audiovisual Farra, lembra que, apesar do difícil cenário, o mercado assiste a uma promissora recuperação dos cinemas – e a "garantia" que as cotas trazem se faz importante em toda a cadeia. "As cotas ajudam a garantir que os filmes nacionais também façam parte dessa recuperação e reconquistem audiência de forma leal, promovendo o acesso da população a essas obras. O Brasil gosta de se ver na tela. E, por enquanto – e ainda mais no atual contexto –, o Estado possui participação fundamental para assegurar que produtoras brasileiras demonstrem esse fato, garantindo não apenas salas, como também horários justos de exibição". 

Outros caminhos para atrair o público 

É claro que, sozinhas, as cotas não resolvem todas as questões de presença de público para os filmes nacionais. Os produtores que ouvimos apontam alguns outros caminhos importantes para que os brasileiros voltem aos cinemas para prestigiar os produtos locais. Para Mello, da Boutique, é necessário apostar nos filmes que tenham vocação para a sala de exibição, seja no circuito comercial, seja no circuito de arte, além de garantir que haja promoção adequada para o lançamento. 

Já Wagon, da ELO, traz outras ideias. "Por exemplo, um subsídio ao preço do cinema nacional – o governo abate imposto do exibidor em troca de uma política de preço com desconto de 50% para o ingresso de filme nacional". Além disso, ela cita incentivo a FUNCINES e PROCULTS, mecanismos voltados a empresas e filmes com grande potencial comercial – "é essencial que a política pública foque na democratização, mas também no cinema comercial" – e o aumento dos orçamentos para que a produção nacional seja mais competitiva por meio de aumento do limite de Artigo 3 e 3A, apoio ao FUNCINE, fomento à internacionalização e coproduções internacionais e maior participação do BNDES. 

Carreira, da Camisa Listrada, aponta condições adequadas de financiamento para a produção que vise competir nas salas de cinema e atingir um público mais amplo. "Investir também em uma diversidade maior de gêneros, inovar e sair das fórmulas tradicionais – algumas já não funcionam mais. Uma campanha permanente de promoção do cinema brasileiro também pode ser importante. Precisamos mudar a visão que o público tem do nosso cinema, ter a percepção que vale a pena gastar comprando o ingresso ao invés de aguardar que o filme saia em outras janelas", completou. 

Investimento, campanhas, editais e fomentos também são os apontamentos de Veronica Debom. "É preciso criar o hábito e o orgulho no brasileiro de consumir nosso cinema. É preciso investir dinheiro para que algo prospere. O estímulo do consumo à cultura é uma responsabilidade do estado e de cada um de nós", endossou. Cintra acrescentou: "Continuar aperfeiçoando e investindo em modelos de fomento público, com lógicas inteligentes que farão com que a atividade financie cada vez mais o próprio setor, é algo interessantíssimo para que nossos projetos e talentos se tornem, progressivamente, mais diversos e qualificados. Isso, por sua vez, fará com que as produções brasileiras possam buscar e alcançar cada vez mais audiência". 

Por fim, D'Avila diz crer que as cotas e esse tipo de reserva de mercado têm de andar junto com uma profunda revisão dos assuntos, gêneros e discussões que o cinema nacional tem produzido. "É essencial que produzamos filmes fortes e relevantes, com temas importantes para nossa sociedade na percepção do público em geral, além de mais diversidade de assuntos e vozes. Todas as cinematografias robustas ao redor do mundo tem como característica uma personalidade intensa e distintiva dos seus produtos frente o fluxo de produtos estrangeiros", concluiu. 

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