O desafio de se estabelecer os exatos contornos dos serviços de comunicação social eletrônica e porque isso importa

Para que os desafios relacionados às políticas públicas no âmbito da Comunicação Social Eletrônica (CSE) possam ser bem encaminhados pelo Estado brasileiro falta o mais básico: o estabelecimento de um entendimento mínimo sobre os exatos contornos das atividades econômicas que podem ser consideradas como CSE.

* Alex Patez Galvão, economista, mestre em Economia e doutor em Ciência da Informação, foi especialista em regulação na Anatel e, desde 2006, é especialista em regulação na Ancine.

Na falta desse entendimento mínimo sobre o que é essencial na definição da Comunicação Social Eletrônica – ou mídias eletrônicas – corre-se o risco de, ao se procurar erguer um necessário arcabouço normativo para a efetivação das políticas públicas, fazê-lo sob a lógica que rege as redes de telecomunicações. Isso equivaleria ao que o ditado popular apontaria como o caso da calda que balança o cachorro.

A dinâmica econômica que envolve as atividades editoriais (curadoria, seleção e organização de conteúdos) que se utilizam de redes de telecomunicações para prover serviços à sociedade são suficientemente complexas e os desafios que essas atividades atualmente apresentam para a sociedade são demasiado relevantes. São desafios que envolvem a questão da programação e veiculação de conteúdos nacionais, independentes – uma questão cara para cultura e para a economia do país –, os interesses econômicos de grandes empresas (algumas delas, as maiores do mundo) e a constituição da esfera pública e da própria democracia.

A tarefa a se cumprir é basilar. Antes do estabelecimento de um arcabouço normativo é preciso a construção de um arcabouço conceitual coerente que englobe os serviços de CSE, antigos e novos, a partir de princípios e parâmetros básicos que sirvam de norte para o encaminhamento das políticas públicas entendidas como importantes pelo Estado brasileiro.

A boa notícia é que esse trabalho já foi em parte realizado. Há 12 anos, em um esforço que envolveu parte do Estado brasileiro e especialistas da área, foi construída uma proposta que apontava o exercício de atividades editoriais como o cerne da Comunicação Social Eletrônica. A partir das atividades editoriais, diversos serviços de CSE, antigos e novos, podem ser devidamente agrupados e nomeados, segundo suas particularidades. E, a partir de princípios e parâmetros específicos, políticas públicas podem ser discutidas com propriedade, concebidas e implementadas. 

A primeira má notícia é que esse trabalho esteve longe do conhecimento público por 10 anos. A segunda má notícia é que este trabalho veio a público sem que se pudesse conhecer os princípios e parâmetros que lhe serviram de base. Sem isso, o trabalho realizado se apresenta apenas parcialmente, em sua superficialidade e, deste modo, aparenta defasado e certamente muito aquém do seu potencial.

Esses princípios e parâmetros seguem atuais e permitem nortear a imperativa discussão sobre a Comunicação Social Eletrônica que a sociedade brasileira precisa realizar. Podem servir ainda de norte aglutinador para que o país possa conceber um arcabouço regulatório coerente para a CSE em meio à fragmentação de competências ministeriais relativas ao tema – uma fragmentação que segue no novo governo.

O texto que segue procura recuperar os princípios e parâmetros que serviram de base ao trabalho realizado em 2010, capitaneado pela Secretaria Especial de Comunicação Social – SECOM, que resultou na Minuta do Anteprojeto de Lei dos Serviços de Comunicação Eletrônica, que envolvia também a Comunicação Social Eletrônica. Esse documento só foi tornado público em 2020 como anexo da tese de doutorado (veja aqui) do jornalista Camilo Vanucchi.

Serviços editoriais x serviços de telecomunicações

O arcabouço normativo existente em relação à Comunicação Social Eletrônica (CSE) – ou em outras palavras, às mídias eletrônicas – é repleto de lacunas, as leis e normas vigentes são defasadas e não dão conta de responder aos novos desafios socioeconômicos, políticos e culturais colocados pelo impacto da ubiquidade das tecnologias e serviços associados à internet.

O Capítulo V da Constituição Federal, que trata da Comunicação Social, nos dá o esquadro para avançar: estamos falando de conteúdos (audiovisual, sobretudo, no caso da CSE), de atividades editoriais (comunicação social, e não privada) que selecionam e organizam esses conteúdos e que fazem uso de redes de comunicação eletrônica (telecomunicações), e de serviços associados a elas, para levar esses conteúdos a estratos do público, com impactos na sociedade ou partes dela. 

De antemão, para que um sólido e coerente arcabouço regulatório para a CSE seja construído é preciso que se estabeleçam claros limites conceituais entre, por um lado, atividades editorais (seleção e organização de conteúdos) e, por outro lado, atividades de provimento de acesso e distribuição de sinais por redes eletrônicas (telecomunicações), quaisquer que sejam essas redes. Do exercício dessas duas atividades distintas derivam serviços (em sentido amplo) distintos, ofertados à sociedade e ao mercado.

Tal como água e óleo que não se misturam e obedecem a dinâmicas próprias segundo a física dos fluidos, serviços editoriais e serviços de provimento de acesso às redes e de distribuição de sinais possuem dinâmicas socioeconômicas próprias. Ao se tentar misturá-los como se fossem uma coisa só, sob um mesmo arcabouço regulatório, acaba-se por não se enxergar a inteireza de uns e outros serviços segundo suas particularidades e, no que diz respeito às políticas públicas, perde-se o potencial que cada um poderia gerar para a economia e para a sociedade.

Como o arcabouço conceitual das atividades e serviços associados estritamente às redes de comunicação eletrônica (acesso, distribuição de sinais, direitos dos usuários) estão relativamente bem equacionados nas normas brasileiras, resta construir uma estrutura conceitual e normativa equivalente para a Comunicação Social Eletrônica e seus serviços (novamente, em sentido amplo) de natureza estritamente editorial.

É preciso, pois, em analogia a uma "árvore conceitual", a consolidação de um "tronco" para a CSE que tenha como característica fundamental o exercício de atividades editoriais. Um tronco cujas "raízes" sejam princípios e parâmetros claros e definidos e a partir do qual possam se ramificar "galhos" que representem os diversos serviços (atividades editoriais) de comunicação social eletrônica, antigos e novos, em suas muitas modalidades e especificidades, incluindo as múltiplas redes que podem provê-los.

Essa tarefa foi em parte realizada em 2010, como resultado do grupo de trabalho (GT) envolvendo 8 áreas do governo e especialistas da área, que consolidou em dezembro daquele ano uma Minuta do Anteprojeto de Lei dos Serviços de Comunicação Eletrônica. A maior inovação do documento foi a especial atenção conferida à Comunicação Social Eletrônica.

Princípios e parâmetros para os contornos da Comunicação Social Eletrônica

No Anteprojeto de 2010 há vários conceitos que indicam claramente o tronco principal baseado na definição da CSE como atividade editorial em essência, assim como os vários galhos que à época, representavam os serviços de CSE existentes. No Anteprojeto de 2010 faltaram, naturalmente, os novos serviços de CSE consolidados nos últimos anos, como as plataformas de streaming de conteúdos audiovisuais, inclusive aqueles que organizam e disponibilizam conteúdos audiovisuais gerados por usuários, corporativos ou pessoas físicas.

Mas sobretudo faltou ao Anteprojeto, à maneira como foi tornado público e pela própria natureza do texto (um esboço normativo), a explicitação de suas raízes, os princípios e parâmetros que foram observados à época, a partir dos quais foi erguida a árvore conceitual de Comunicação Social Eletrônica. Sem a explicitação dessas raízes, não há clareza suficiente sobre a solidez de seu tronco e o trabalho realizado se apresenta superficialmente defasado e aquém do seu potencial.

O princípio fundamental a ser observado em relação à Comunicação Social Eletrônica, tanto em 2010 como no presente, é a atividade editorial que a caracteriza – seja por curadoria direta ou definida previamente por algoritmos específicos – independente das redes eletrôni9cas que lhe dão suporte, cada vez mais diversas. Outro princípio é o caráter social da CSE, na medida em que serviços de CSE são ofertados para estratos da sociedade (e do público) e têm potencial de impacto na esfera pública.

O que há em comum em todos os serviços de Comunicação Social Eletrônica é a existência de um responsável editorial pela prestação do serviço. É a partir da atividade editorial que se estabelecem os parâmetros mais básicos de diferenciação dos serviços no que tange aos propósitos da política pública norteados pelos preceitos da Constituição Federal.

O primeiro desses parâmetros básicos é o tipo de conteúdo entregue aos usuários e suas finalidades. Podem ser conteúdos audiovisuais ou sonoros, por exemplo, e podem ter finalidades culturais, informativas, educativas e/ou de entretenimento. A partir desses diferenciais é possível inferir a densidade cultural e informativa do serviço de CSE e seu impacto na sociedade.

O segundo parâmetro a ser observado é a diferenciação quanto à organização editorial dos conteúdos, se linear – as grades de programação dos rádios e canais de TV aberta ou por assinatura – ou não linear, a exemplo dos catálogos dos serviços de vídeo sob demanda ou das plataformas de streaming de música, independentemente dos meios utilizados para entregar esses serviços.

No que concerne à atividade editorial, não faz mais sentido, por exemplo, uma diferenciação regulatória entre um serviço de radiodifusão de sons e imagens, outorgado pelo Estado, um "canal" de programação aberto por satélite (a exemplo da banda C no passado) e um "canal" de programação linear disponível na Web, em plataformas de streaming ou em serviços de televisão por assinatura entregues aos consumidores pela internet. Todos esses casos entregam, de forma gratuita ao consumidor, uma grade horária de programação de conteúdos audiovisuais segundo a curadoria de um programador. Ainda que as modalidades da entrega desse serviço possam utilizar meios passíveis de regulação no âmbito das telecomunicações, são atividades editoriais idênticas e, portanto, é possível nomeá-las como uma mesma atividade ou serviço editorial (TV aberta, por exemplo).

O terceiro parâmetro diz respeito ao poder do editor do serviço de Comunicação Social Eletrônica frente aos usuários/consumidores em selecionar os conteúdos disponibilizados, o que implica separar conceitualmente, por um lado, serviços que contenham conteúdos organizados em grades de programação (rádios tradicionais ou na web, canais de TV) dos serviços que proveem catálogos (VoD, streamings de áudio). Por outro lado, é preciso separar conceitualmente serviços pagos e serviços de "livre acesso", geralmente financiados por publicidade ou pelo orçamento público. No que tange à política pública, implica dizer que quanto maior o poder do editor do serviço de Comunicação Social Eletrônica frente aos usuários/consumidores, maior a possibilidade de uma regulação que preserve o interesse público à luz do que prevê a Constituição Federal e as leis do país.

Há aqui um desafio no que tange às plataformas que ofertam conteúdos organizados em catálogos para streaming pela internet, na medida em que algoritmos previamente programados direcionam a seleção, por parte dos usuários, dos conteúdos (inclusive publicitários) disponíveis nos catálogos, reduzindo, ao menos em tese, as possibilidades de escolha dos usuários.

Por fim, o quarto parâmetro básico a ser observado diz respeito ao princípio da semelhança entre serviços de Comunicação Social Eletrônica no que se refere à similaridade da atividade editorial, à expectativa do usuário com relação ao serviço prestado e ao impacto que um serviço determinado pode ter em mercado específicos (de publicidade, por exemplo). Em grande medida esse parâmetro determina o grau de substituibilidade – conceito que na Economia, significa que uma mesma necessidade pode ser satisfeita por diferentes bens ou serviços – entre os serviços de CSE.

No mercado de televisão paga (provimento de múltiplos canais lineares), por exemplo, não há qualquer diferenciação editorial entre a oferta de pacotes de canais por redes dedicadas (cabos coaxiais, fibra, satélite DTH) ou por redes não dedicadas (isto é, internet). Também no que tange a experiência do usuário, o aparelho terminal (set-top box) acoplado a uma rede dedicada ou aberta (internet) iguala os serviços. O impacto que tais serviços no mercado, entendidos hoje pelas normas relativas às telecomunicações como, respectivamente, Serviço de Acesso Condicionado e Serviço de Valor Adicionado, só não são idênticos porque a legislação os trata de maneira diferenciada no que tange a aspectos como tributação e obrigações legais.

A mais clara definição dos diversos serviços (e mercados) de Comunicação Social Eletrônica, a partir dos parâmetros apontados anteriormente, pode dar a indicação da inexistência ou existência de barreiras à entrada a novos competidores, implicando ações de políticas públicas ex ante ou ex post, necessárias à preservação do interesse público, notadamente a preservação do ambiente competitivo que promova o investimento privado, mas também a diversidade de fontes de informação. 

O Anteprojeto de 2010

Os princípios e parâmetros aqui relatados foram levados ao GT pela representação do Ministério da Cultura – MinC (capitaneada pela ANCINE) e foram objeto de intensos debates, a partir dos quais foram aperfeiçoados e serviram de base à Minuta do Anteprojeto no que se refere à CSE e serviços relacionados.

A proposta do MinC ao GT tinha como inspiração a Constituição Federal e a legislação de outros países que haviam lidado com os desafios da proteção e estímulo à programação dos conteúdos nacionais, independentes e regionais. A proposta do MinC procurou ainda compatibilizar os conceitos trabalhados no GT com o processo de discussão legislativa em torno do Projeto de Lei que, no ano seguinte, resultaria na Lei 12.485/2011 (a Lei do Serviço de Acesso Condicionado), cujos princípios também eram semelhantes – processo em que o MinC teve participação relevante.

Assim, o Anteprojeto definiu a Comunicação Social enquanto complexo de atividades de criação, produção, seleção e organização editorial de informações e de conteúdos diversos disponibilizados ao público em geral ou a segmentos do público e que tenham finalidades culturais, educativas, informativas e de entretenimento. Por sua vez, definiu um serviço de comunicação social eletrônica como o conjunto de atividades de seleção e organização de informações e conteúdos disponibilizados ao público em geral ou aos assinantes por meio de serviços de comunicação eletrônica.

Há no documento, portanto, uma clara diferenciação entre serviços de comunicação social eletrônica (atividades editoriais), por um lado, e serviços de comunicação eletrônica (de telecomunicações), por outro lado. Com relação aos primeiros estamos falando das atividades editoriais relacionadas às mídias eletrônicas, ou seja, rádio, televisão aberta e por assinatura, serviços lineares de áudio e de vídeo na internet, assim como provedores de catálogos de áudio e vídeo sob demanda, incluindo as plataformas de vídeo alimentadas por usuários.

A referida diferenciação segue válida e importante. Os serviços de CSE não devem estar conceitualmente relacionados às redes que conferem acesso a esses serviços, porque um mesmo serviço de CSE pode fazer uso de diversas redes. Só assim será possível lidar com o cenário de complexidade que já se apresenta. 

Tome-se, por exemplo, o caso do serviço de televisão paga ou, em outras palavras, o serviço de oferta de múltiplos canais lineares. A Lei do Serviço de Acesso Condicionado (Lei 12.485/2011) foi a primeira e única norma brasileira a separar conceitualmente as atividades editoriais das atividades relacionadas a redes de (tele)comunicações. Ao fazê-lo descreveu adequadamente as atividades ligadas às redes de telecomunicações, as quais, sob o guarda-chuva do conceito de "distribuição", incluíam as "atividades de entrega, transmissão, veiculação, difusão ou provimento de pacotes ou conteúdos audiovisuais a assinantes por quaisquer meios eletrônicos".

A solução encontrada pelos legisladores, ao definir o provimento dos serviços como uma das atividades da "distribuição", seria suficiente para dar conta do provimento do serviço de oferta de pacotes de canais lineares por quaisquer redes, inclusive por meio de redes não dedicadas (OTT – over the top), atestando a neutralidade das redes de comunicação eletrônica em relação aos serviços por elas suportados. Contudo, as agências reguladoras afetas ao tema tiveram entendimento em sentido contrário, cristalizando assimetrias regulatórias, competitivas e tributárias entre competidores de um mesmo serviço de caráter essencialmente editorial. 

Ora, se o provimento de múltiplos canais lineares (pacotes) por redes dedicadas ou pela internet são iguais no que tange à natureza da atividade editorial e à percepção do consumidor, deveriam ser tratados como tais pela regulação, seja em relação à atividade editorial que os caracteriza, como também em relação às obrigações de must carry e tributação.

A Lei do SEAC é fruto de sua época, decorrente de um processo legislativo que se iniciou em 2007. Apesar de reconhecer as atividades editoriais como separadas das atividades relacionadas às telecomunicações, a lei elencou um único serviço (SEAC) e o relacionou umbilicalmente ao acesso a essas redes. Quando a autoridade pública responsável não reconhece como SEAC o provimento de múltiplos canais lineares, devidamente empacotados, pela internet, não se afasta apenas as obrigações relativas à camada de telecomunicações (must carry de canais locais), como também as obrigações relativas às atividades editoriais (programação e empacotamento), a exemplo da obrigação de empacotamento de canais brasileiros e independentes. A lei poderia ter avançado ainda mais, reconhecendo as atividades editoriais como serviços em si, suscetíveis de cumprimento de obrigações específicas, desde que providos por redes e serviços de comunicação eletrônica, quaisquer que fossem.

O Anteprojeto de 2010 avançou mais. No caso da Televisão Aberta, por exemplo, o Anteprojeto lançou um olhar para o futuro com a conceituação do "galho" Serviço de Televisão Aberta (serviço editorial, audiovisual, linear e aberto) e, em consonância com o passado, como ramificação deste "galho, o serviço de radiodifusão de sons e imagens, como modalidade específica baseada em redes de comunicação (e normas) também específicas. Procurou-se com isso, dar conta da possibilidade de outras modalidades do Serviço de Televisão Aberta, tais como aqueles providos por redes não-dedicadas ou por satélite.

Serviços de CSE similares e distintos

Os princípios e parâmetros elencados anteriormente servem de norte para que se possa comparar serviços de Comunicação Social Eletrônica similares e enquadrá-los sob uma mesma perspectiva de política pública.

Mas servem também para encontrar similaridades importantes em serviços de natureza aparentemente distintas. É o caso, por exemplo, dos serviços de televisão paga e dos serviços de vídeo sob demanda, também pagos. Ambos entregam conteúdos audiovisuais aos consumidores, respectivamente na forma de múltiplos canais de programação e na forma de catálogos de obras.

Ainda que sejam serviços distintos considerando os parâmetros apontados anteriormente, competem em boa medida entre si, posto que em muitos casos são considerados como serviços substitutos pelos consumidores – a ascensão dos serviços de VoD por streaming em todo o mundo em concomitância à diminuição da quantidade de assinantes de serviços de televisão paga denotam algum grau de competição entre esses serviços. E por assemelharem-se e competirem em algum grau entre si, prestadores desses serviços distintos deveriam ter obrigações em parte semelhantes, a exemplo de tributação e obrigações de programação de determinados conteúdos – guardadas as especificidades relativas às atividades de programação das grades horárias e de seleção e disponibilização das obras em catálogos.

Um grande desafio no âmbito da Comunicação Social Eletrônica diz respeito à compreensão e tratamento dos serviços de vídeo sob demanda que disponibilizam conteúdos audiovisuais gerados pelos usuários, a exemplo do Youtube, TikTok ou outras redes sociais. Novamente, entender esses serviços como sendo caracterizados pelo exercício de atividade editorial constitui o primeiro passo. Esses serviços se remuneram, sobretudo, com a venda de espaços publicitários – à semelhança da televisão aberta, ofertados aos usuários segundo lógica editorial.

A atividade de curadoria, mesmo intermediada por algoritmos pré-definidos, segue existindo em plataformas do tipo Youtube de maneira ainda mais potente que nas mídias eletrônicas mais tradicionais. A experiência dos consumidores de vídeo nessas plataformas/serviços é direcionada, por meio dos algoritmos, ao consumo de vídeos e de publicidade específicos para atender a gostos e preferências individuais. A programação dos algoritmos define os parâmetros da curadoria ex ante num processo de atualização automática e constante de determinação de perfis individuais de consumo a partir da coleta sistemática e tratamento dos dados de navegação dos usuários/consumidores de conteúdos publicitários e não publicitários.

Portanto, há nesses serviços um responsável editorial definido que se remunera justamente pelo exercício da atividade editorial – ainda que esse exercício possa ser compartilhado pelos usuários que alimentam a plataforma de conteúdos. Ocorre que esses serviços adquiriram relevância econômica e social maiores do que a maior parte dos serviços de CSE existentes anteriormente. Concentram receitas publicitárias e passaram a ser fundamentais como intermediadores do debate público.

A dinâmica da atividade editorial desses serviços e de sua lucratividade depende do direcionamento de conteúdos (e publicidade) cada vez mais específicos a usuários que compartilham de determinadas comunidades de interesses. Essa dinâmica incentiva a criação de "ecossistemas informacionais" baseados em troca de informações, não necessariamente fidedignas, destinados a reproduzir mecanismos psicoafetivos de sentido de pertencimento a grupos particulares – que podem, inclusive, alhear-se da realidade e do debate público produtivo. Impactam, portanto o debate público e a esfera pública.

A regulação desses serviços a partir da atividade editorial que os caracteriza (mediada por algoritmos e atualizada com dados dos usuários) torna-se, portanto, imperativa em prol da coibição da circulação de fake news e da própria preservação do espaço público do debate efetivamente democrático. Ademais, o impacto social e o poder de mercado que adquiriram no que tange à publicidade audiovisual frente a outros serviços de CSE demandam tratamento regulatório adequado, em alguma medida mais simétrico em relação aos outros serviços de CSE – guardadas suas especificidades.

As bases para o debate de uma nova institucionalidade

Não se trata de defender o Anteprojeto de Lei dos Serviços de Comunicação Eletrônica de 2010, no que refere à CSE, mas sim de recuperar princípios e parâmetros fundamentais discutidos naquele processo de trabalho coordenado pela SECOM. Esses princípios e parâmetros seguem atuais, seja para encaminhamento, no âmbito das políticas públicas, das questões e desafios que se apresentam no presente, seja para conferir instrumentos ao Estado para lidar com os desafios futuros.

Não há exatamente novidade no que se coloca aqui. Os países europeus há décadas foram por esse mesmo caminho e criaram estruturas regulatórias específicas para lidar, por um lado, com os serviços editoriais (serviços audiovisuais, sobretudo) providos por meio de redes de comunicação eletrônica e, por outro lado, com os serviços próprios do provimento de acesso às redes de telecomunicações. Esses países, ou ao menos aqueles que procuram manter um setor audiovisual economicamente pujante, mantêm essas estruturas regulatórias distintas e estanques, a despeito das recomendações de organismos supranacionais dos quais fazem parte – a exemplo da OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico).

A defesa da construção de um arcabouço normativo para a CSE que seja subsidiário da regulação das redes de telecomunicações tem como substrato o fato de que assuntos técnicos relacionados às redes de telecomunicações são relativamente bem conhecidos. Isso se reflete em leis e normas vigentes para dar conta das redes de telecomunicações e que são resultantes do debate público decorrente desse entendimento. Há ainda a defesa da proeminência das redes de telecomunicações na regulação de todo e qualquer serviço que fazem uso delas, em referência a um tempo no qual um serviço de CSE só poderia existir associado a uma rede de telecomunicação específica (radiodifusão, cabo, satélite etc.).

Mas há também interesses econômicos poderosos em jogo, os quais procuram minar a possibilidade de regulação das atividades específicas (editoriais) da CSE, em benefício de grandes empresas, algumas as mais valiosas do mundo, que têm a atividade de programação de conteúdos (audiovisuais especialmente, publicitários ou não), mediada ou não mediada por algoritmos, como o base para faturamento e crescimento.

Para o Brasil o desafio para o momento é conferir ao debate público, por meio de um arranjo conceitual útil ao debate, os meios a partir dos quais as políticas públicas podem ser discutidas, concebidas e implementadas. E, como consequência, o soerguimento de um aparato normativo mínimo relativo à CSE, baseados nos princípios e parâmetros listados anteriormente, que seja leve o suficiente para dar conta tanto do passado como do futuro.

Para a política pública, além daqueles objetivos traçados pela Constituição Federal associados à Comunicação Social e à Cultura, mesclam-se objetivos a serem perseguidos no que concerne à promoção de um ambiente competitivo e inovador, interessante ao investimento privado, capaz de gerar empregos qualificados, fortalecer a cultura nacional e regional, garantir o acesso à diversidade de fontes de informação, coibir o impacto negativo das fake news e promover a inserção cidadã dos brasileiros no mundo digital e na sociedade e economia das redes digitais.

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