Ainda o Projeto de Lei "Paulo Gustavo", polêmica e esquecimento seletivo

Fui honrado com um artigo assinado por assessores parlamentares da bancada do PT no Senado, os servidores Bruno Moretti e Marcos Souza, contestando o artigo que escrevi para essa prestigiosa publicação Tela Viva no último dia 25 de fevereiro. Os assessores me citam 18 vezes, pessoalmente, o que acaba por "fulanizar" uma discussão de ideias. No fundo me parece querermos todos o bem para o audiovisual. Respeito e admiro ambos servidores e tive a oportunidade de estar perto de Marcos Souza em discussões muito importantes como o Marco Civil da Internet e o aperfeiçoamento da gestão coletiva de direitos autorais, entre outras oportunidades e não serei indelicado de focar o debate na pessoa de nenhum deles.

De qualquer maneira, não poderia deixar de escrever uma resposta ao artigo assinado por eles defendendo o Projeto de Lei Paulo Gustavo, uma vez que colocaram sobre meu texto adjetivos não merecidos, como "equívocos" e "inverdades". Tem gente que quando discorda da sua opinião diz que você está equivocado e, quando não quer que se dê luz aos fatos, chama o mensageiro de mentiroso. É comum, mas não é correto. Pelo menos os assessores começam informando que suas observações partem do lugar que ocupam, ou seja, assessores do autor do projeto que chamei de "imperfeito", por uma questão de elegância. O projeto, para o audiovisual brasileiro por uma questão de opinião, é ruim por não priorizar o desenvolvimento da indústria do audiovisual nacional, que é o primeiro objetivo da política nacional do cinema previsto no art. 2º, I da MP 2228-1/01. Pulverizar recursos que foram ou deveriam ter sido priorizados à produção industrial nacional do cinema será um desperdício se considerados os inúmeros projetos que podem ser concluídos e que sofrem os aumentos de custos pelos efeitos da pandemia.

Não se trata de discutir se os projetos de lei começam com uma boa ideia, mas são aprovados na forma do possível. Aqui a crítica é que a boa ideia de recuperar valores do Fundo Setorial do Audiovisual (FSA) é correta, mas a imperfeição original do projeto é não priorizar, nem parcialmente, o seu destino original, natural e legal, e sim transferir valores de forma pulverizada, entre estados, Distrito Federal e municípios, o que, como os próprios assessores concordam, será de uma efetividade de implementação de produção bem difícil.

Após toda a digressão sobre as normas surgidas na pandemia da COVID e o estado de calamidade, os assessores admitem que "esses diplomas legais, juntos, afastaram a aplicação de algumas regras fiscais para que ações emergenciais pudessem fazer frente aos efeitos sociais e econômicos da pandemia", tal qual a Lei Aldir Blanc, (que inclusive aprovou a postergação da finalização dos projetos de audiovisual bem como os vencimentos dos boletos de investimento da Leis de Incentivo).

Exatamente nesse ponto é que nosso artigo dizia que essa Lei ficaria melhor se tivesse criado uma linha de recursos excepcional para os produtores audiovisuais independentes completarem orçamentos de obras pendentes de produção, bem como fizesse frente à elevação dos custos de produção, ao invés de pegar um dinheiro e superávits que foram gerados originalmente para esse objetivo, deixando a indústria do cinema sem o equivalente, necessário e premente suporte excepcional.

O artigo que escrevi não pretende defender Governo nenhum, nem o do presente nem os do passado, porque todos, sem exceção, se apropriaram ou contingenciaram recursos do FSA. Basta lembrar que o FSA foi criado pela Lei Federal nº 11.437, de 28 de dezembro de 2006, e regulamentado pelo Decreto nº 6.299, de 12 de dezembro de 2007, como uma categoria de programação específica do Fundo Nacional de Cultura (FNC), substituindo o PRODECINE que era de 2001, época do primeiro mandato do Presidente Lula, que se renovou até 2010. Lula foi sucedido pela Presidente Dilma até 2016, cujo mandato foi completado pelo vice-presidente Michel Temer no final de 2018. Esses governos todos fizeram contingenciamento relevante do FSA. De 2012 a 2018 o FSA teria arrecadado R$ 7,4 bilhões com a Condecine, sendo R$ 6,6 bilhões recolhidos pelas empresas de telecomunicações. Só com a dedução da DRU, a Condecine teria sido reduzida para R$ 5,5 bilhões. Portanto o atual Governo talvez pudesse ter sido mais eficiente em corrigir os atos e fatos dos anteriores, e não foi, infelizmente, mas não se pode apagar os fatos da história.

É muito ruim que não se consiga evitar que se façam contingenciamentos. Conseguir esse objetivo é certamente um consenso de toda a indústria do audiovisual e das telecomunicações, que no final do dia é quem paga a conta da CONDECINE que irriga o FSA. O art. 5º da EC 109 autorizou que o Poder Executivo se utilizasse do superávit financeiro das fontes de recursos dos fundos públicos para a amortização da dívida pública do respectivo ente e se o ente não tiver dívida pública a amortizar, o superávit financeiro das fontes de recursos dos fundos públicos do Poder Executivo será de livre aplicação. Essa emenda foi aprovada pelo Congresso Nacional e teve como fundamento a mesma pandemia da COVID, tratando de forma indistinta todos os fundos e não apenas o FSA. Não se pode chamar de "confisco" uma desvinculação de receitas determinadas numa emenda constitucional, por mais que eu mesmo concorde que os recursos dos fundos devessem ser sempre preservados à sua vinculação ordinária, fato que o Projeto de Lei não faz.

Os assessores perguntam porque o Governo e o Conselho Superior do Cinema – CSC não propuseram o uso do superávit financeiro do FSA às produtoras independentes via ANCINE, colocando-me implicitamente como um dos integrantes dessa suposta omissão. Primeiro, diga-se que o CSC é um órgão colegiado, que existe desde 2001, com uma composição na qual há representantes dos Ministérios, da sociedade civil e especialistas. Em todos os governos desde 2001 os representantes da sociedade civil e especialistas, em número de apenas cinco, não tiveram ou têm condições de interferir na gestão do orçamento da União e no contingenciamento dos Fundos. Em seguida, estamos aqui comentando um "Projeto de Lei" que poderia dar trato às melhores possibilidades de utilização dos recursos, portanto, se um partido quer legitimamente se opor ao Governo de plantão, isso não deveria resultar em se opor à política nacional do audiovisual existente e instalada, que é uma política de Estado parametrizada por leis que existem desde a década dos anos 1990, como a Lei de Incentivo ao Audiovisual. As agências federais têm status de órgão de Estado e deveriam assim ser entendidas.

Sobre a paralisação da ANCINE, não se pode apagar da história que ela ocorreu pelos problemas apontados pelo Tribunal de Contas da União – TCU, que determinou que as milhares de prestações de contas dos projetos fomentados nos Governos anteriores fossem verificadas, porque não se admitiu o método "por amostragem", conhecido como ANCINE Mais Simples. Essa metodologia foi aprovada pelo art. 3º, parágrafo único do Decreto 8.282/14 da Presidente Dilma, quando naquela época a ANCINE já estava em condições difíceis perante os órgãos de controle quanto à falta de tomada de contas dos projetos. Esse efeito dominó acabou causando a paralisia, a bem da verdade. O sistema de fomento pagou o preço dos problemas de gestão do passado. O Governo atual não precisou de nenhum esforço para causar a paralisia e talvez a crítica a ele é que pudesse ter se esforçado para resolver os problemas do passado. Todavia fato que a ANCINE tem se esforçado as correções de rumo, posto que em última instância cabe a ela, por Lei, e não aos Governos, a gestão e fiscalização do fomento.

Em conclusão, vejo que estamos todos bem intencionados e apenas divergimos por causa do esquecimento da possibilidade de utilização prioritária de parte desses recursos que o Projeto de Lei destina a pulverizar nos entes da federação, dentro da mesma excepcionalidade que o justifica, para os projetos existentes no âmbito da política de Estado do desenvolvimento da indústria do audiovisual, para dar conta da finalização e do aumento de custos de produção decorrentes dos problemas gerados pela pandemia. Os assessores especialistas em processo legislativo e formação de leis saberiam tratar essa possibilidade dentro da mesma excepcionalidade que conseguem justificar a distribuição desses recursos preconizada no PL. O resto é política partidária, área à qual não pertenço.

*Marcos Alberto Sant'Anna Bitelli – Doutor e Mestre em Direito pela PUC-SP; Especialista em Direito de Mídia, Entretenimento Audiovisual; Membro do Conselho Superior do Cinema.

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