Na era do streaming, roteiristas demandam melhores condições de trabalho, espaço para criar e valorização de sua autoria

(Foto: Pixabay)

As condições de trabalho e a nova realidade imposta aos roteiristas do audiovisual estão em pauta no Brasil e no mundo. TELA VIVA conversou com alguns dos principais nomes da categoria para entender quais são as maiores demandas atualmente e como eles avaliam, hoje em dia, o mercado para a classe. Vale começar dizendo que a chegada das plataformas de streaming foi o principal ponto de virada não só para os hábitos de consumo de filmes e séries, mas também para a produção dos mesmos e o trabalho dos profissionais envolvidos na cadeia do audiovisual. Com a pandemia, elas se tornaram fonte principal de entretenimento, assim como a grande janela de oportunidade para uma produção audiovisual nacional independente que teve suas políticas públicas para o setor paralisadas. 

Bia Crespo, roteirista e produtora responsável pela ideia original de longas como "Férias Trocadas" e "Caindo na Real", dos quais também assina os roteiros, contextualiza: "Os streamings foram majoritariamente responsáveis pela produção audiovisual brasileira nos últimos quatro anos, quando não podíamos contar com os órgãos públicos de incentivo à cultura. Vimos o surgimento de muitas salas de roteiro, especialmente no primeiro ano de pandemia, quando produtoras e players estavam impedidas de filmar e só podiam focar no desenvolvimento de novos projetos". Ela segue: "Por outro lado, o poder dos roteiristas sobre as obras diminuiu consideravelmente. Com investimento privado, vem também pressões muito maiores sobre expectativa de público, o que poda de uma certa forma a criatividade e a autoria. Muitas vezes, a ideia original não é mais reconhecida no final do projeto". 

Ou seja: é claro que o streaming e o tal consumo "multiplataforma" abriu novas possibilidades para os profissionais. Mas, ao mesmo tempo, ele pode ter prejudicado a valorização e o espaço de alguns elos dessa cadeia, como os roteiristas. Para Gautier Lee, diretora e roteirista queer negra que trabalhou em séries para Amazon e Netflix e é uma das fundadoras do Macumba Lab, coletivo de profissionais do audiovisual negro no Rio Grande do Sul, "o maior causador da desvalorização do trabalho dos roteiristas vem nos contratos impostos pelas plataformas estrangeiras". Ela explica: "Esses contratos são tidos como 'leoninos' pelo mercado audiovisual, não somente por serem traduções das versões utilizadas no exterior, mas também porque, em determinadas cláusulas, estão em desacordo com a legislação brasileira. Tais contratos não contemplam devidamente os direitos básicos da profissão, especialmente o direito autoral. Na teoria, roteiristas deveriam desenvolver um trabalho criativo que deveria ser respeitado e levado em consideração como a parte mais importante da produção audiovisual. Mas, pelo fato dos contratos praticados nos condicionarem a uma prestação de serviço, somos tratados como meros terceirizados responsáveis por entregar uma encomenda, e não como talentos indispensáveis para a produção audiovisual nacional". 

"O maior causador da desvalorização do trabalho dos roteiristas vem nos contratos impostos pelas plataformas estrangeiras" – Gautier Lee (Foto: Rafael Bede)

Dados e algoritmos 

Thiago Dottori, roteirista desde 1999, autor de longas como "Vips", "Os 3", "Trago Comigo" e "Turma da Mônica: Laços", além de séries de TV, e um dos articuladores do movimento de criação da ABRA – Associação Brasileira de Autores Roteiristas, da qual foi seu primeiro vice-presidente, e atual vice-presidente da GEDAR – Gestão de Direitos de Autores Roteiristas, levanta outro ponto importante: "A chegada das plataformas interferiu significativamente na maneira como é possível coletar os dados da audiência, o que é importante e positivo, claro. Mas a partir daí, essa 'cultura algorítmica' começou a ganhar força e interferir nos processos criativos, como se fosse possível descobrir alguma fórmula por trás dos sucessos. Como consequência, a visão do autor, a forma como ele vê o mundo e como ele deseja expressar aquilo através de sua obra, não necessariamente é o que há de mais importante no processo, mas a necessidade de 'cumprir certas burocracias criativas'. Claro que todos estudamos técnicas narrativas, mas não podemos reduzir o debate a isso. Muitas vezes, o resultado são obras que acabam se parecendo, um tanto genéricas". 

"A 'cultura algorítmica' começou a ganhar força e interferir nos processos criativos, como se fosse possível descobrir alguma fórmula por trás dos sucessos" – Thiago Dottori (Foto: Divulgação)

Paralelo entre as demandas de Hollywood e as nacionais 

Os roteiristas de Hollywood entraram em greve no início do mês de maio. Eles levantam questões que são fundamentalmente muito semelhantes às demandas apontadas pelos roteiristas brasileiros. Gautier cita algumas: "compensação financeira justa; participação nos lucros por reprises e outras exibições; além da regulamentação do uso de inteligência artificial para escrita e rescrita de obras". Para ela, "essas questões são negligenciadas pelas plataformas, tanto a nível nacional como internacional. Mesmo que a produção audiovisual tenha crescido exponencialmente na última década com a chegada global dos streamings, a remuneração dos roteiristas permaneceu estagnada. Isso transforma o nosso ofício em apenas um 'job freelance', mesmo que nos seja cobrado exclusividade para trabalhar em cada obra". E Bia completa: "Torcemos para que as conquistas deles se reflitam em nosso mercado. Ainda que a indústria americana funcione um pouco diferente da nossa, percebemos que as questões ligadas a autoria, sobrecarga de trabalho, falta de estabilidade na carreira e uso indevido de inteligências artificiais são caras à roteiristas de qualquer lugar do mundo". 

Dottori pontua que muitas das reivindicações dos roteiristas americanos se assemelham às questões que os roteiristas brasileiros enfrentam justamente porque boa parte do mercado para os roteiristas hoje está nas empresas de streaming. E ele relembra que a ABRA, inclusive, fez uma denúncia ao Ministério Público do Trabalho para pedir uma mediação com as empresas em busca de uma reformulação dos contratos. "Há também algumas diferenças entre o sistema Copyright, usado nos Estados Unidos e Inglaterra, e o Sistema de Direito de Autor, que baseia a Lei Brasileira. Mas na essência, os autores queremos recompensas e pagamentos justos de acordo com a exploração comercial das nossas obras", reforça. 

Contexto histórico 

Thelma Guedes é roteirista há mais de 20 anos e já recebeu dois Emmy Internacional de Melhor Novela para "Joia Rara", em 2014, e "Órfãos da Terra', em 2020, ambas produções da TV Globo, Quando começou sua carreira no roteiro, no final da década de 90, a realidade da profissão no Brasil era absolutamente distinta: havia um número bem pequeno de roteiristas profissionais; a formação de roteiristas, nos poucos cursos que existiam, era voltada quase que exclusivamente para o cinema; na TV, havia grandes autores de telenovelas, minisséries e alguns seriados, que eram poucos e muito valorizados justamente pelo trabalho diferenciado que faziam. "A chegada dos canais pagos, trazendo as novas séries estrangeiras, cada vez mais bem elaboradas, com temas ousados e narrativa mais ágil, foi o começo da mudança que estaria por vir. Mas a grande mudança ocorreu de verdade, todo mundo sabe, com o surgimento das plataformas de streaming e o modo mais flexível de assistir televisão. O interesse pelas produções televisivas e, em consequência, pela profissão de roteirista, passou a crescer. Muitos cursos de formação de roteiristas surgiram, dentro e fora das universidades. Por outro lado, as mudanças da sociedade foram exigindo temas mais diversos e a contratação mais inclusiva de profissionais de roteiro. Ao mesmo tempo, alguns antigos colaboradores foram alçados para autoria de telenovelas. As empresas vindas de fora passaram, ainda que numa escala menor do que se esperava, a produzir obras no Brasil. Então, muita coisa mudou para melhor, é evidente. Mas a grande questão é que a ampliação do mercado audiovisual trouxe novos desafios, problemas e riscos", observa. 

Segundo Thelma, um grande problema para a profissão que é possível perceber na atualidade é a perda da noção da importância do autor da obra – que é o roteirista que cria a história e é responsável pela sua concepção e escrita – em todo o processo de criação: "É uma espécie de aberração encarar o autor apenas como um chefe de sala de roteiro. Isso diminui o seu valor artístico e acredito que tem um impacto negativo direto no resultado qualitativo da obra. O autor deveria pelo menos estar no mesmo patamar de seus parceiros – diretor e produtor. Diminuí-lo não é um caminho que resulte bem para ninguém. Ainda que isso ainda não esteja acontecendo na televisão aberta, há um grande risco". 

"É uma espécie de aberração encarar o autor apenas como um chefe de sala de roteiro"

Thelma Guedes (Foto: Fabio Audi)

Dottori, do ponto de vista de um autor também já bastante experiente, acredita que, nos últimos anos, uma ideia que ele define como "perigosa" começou a circular no mercado, que fica expressa no termo "autoria coletiva", que é errado. "Uma obra é criada por um autor, ou por mais de um, em co-autoria. Mas os processos criativos recentes buscam, muitas vezes, descaracterizar a autoria, com muitas trocas na equipe e muita interferência criativa, muitas vezes resultando numa obra sem contorno. Quando comecei, no final dos anos 90, acredito que havia uma clareza maior quanto à definição da autoria. No cinema, geralmente nas mãos do diretor. Na televisão, definitivamente nas mãos do escritor audiovisual, do roteirista. Hoje, em muitos projetos, essa definição se dilui no processo". 

União da classe e trabalho das associações 

Como evidenciado pela greve dos roteiristas de Hollywood, uma união dos roteiristas enquanto classe é benéfica e essencial na luta para que os direitos sejam assegurados. Na opinião de Maíra Oliveira, roteirista, dramaturga, escritora e educadora, Presidente da ABRA em 2021/2022 e conselheira atual do Sudeste da APAN (Associação de Profissionais do Audiovisual Negro), que tem entre seus projetos mais recentes como roteirista os filmes "Verão" e "Primavera", da franquia Amazon "Um Ano Inesquecível", essa união da classe existe, e o histórico das associações, suas articulações e seus feitos provam isso. "No entanto, é inegável que os últimos quatro anos desmobilizaram muitos movimentos sociais e organizações da sociedade civil, pois as pessoas estavam distraídas dessa luta, por conta do circo criado pelo conservadorismo que nos forçou a priorizar a sobrevivência. Mas, agora, em um governo favorável ao diálogo, projetos de leis construídos em parceria com a sociedade civil e entidades que representam roteiristas e profissionais do audiovisual voltam à discussão e são pautados como prioridade pela Secretaria do Audiovisual do Ministério da Cultura", pontua. 

Bia, por sua vez, ressalta que, embora a ABRA tenha um trabalho consistente para garantir piso salarial e direitos autorais, ela não é um sindicato, portanto não consegue fazer a pressão necessária para exigir mudanças mais profundas, como está acontecendo com a WGA nos Estados Unidos. "Nos EUA, a greve funciona porque a WGA tem um contrato que obriga produtoras e estúdios a contratarem apenas roteiristas associados. Dessa forma, quando os associados entram em greve, os estúdios não conseguem substituí-los. Se entrássemos em greve hoje no Brasil, amanhã já teria gente no nosso lugar. Fatores como crise econômica e dificuldade para entrar no mercado de trabalho contribuem para esse cenário: tem muito mais mão de obra disponível do que oferta de emprego", aponta.

"Fatores como crise econômica e dificuldade para entrar no mercado contribuem muito para esse cenário: tem muito mais mão de obra disponível do que oferta de emprego"

Bia Crespo (Foto: Mia Shimon)

Na visão de Dottori, os roteiristas brasileiros estão unidos através das entidades, a ABRA e a GEDAR, do qual é presidente. "Temos participado ativamente da discussão sobre a reformulação da Lei de Direitos Autorais, atualmente em discussão junto à Secretaria de Direitos Autorais do Ministério da Cultura. Um dos caminhos, por exemplo, é ter nosso Direito de Remuneração assegurado através de uma nova Lei de Direitos Autorais, que garanta aos autores e criadores de uma obra audiovisual um Direito de remuneração enquanto aquela obra for explorada comercialmente. A ABRA também tem atuado através de inúmeras iniciativas na valorização da nossa classe", menciona. "Nosso secretário de Direitos Autorais junto ao Ministério da Cultura, Marcos Souza, é a pessoa mais preparada para o ocupar essa posição e temos tido um diálogo muito produtivo e em sintonia. Espero que resulte numa nova lei que finalmente corrija essa demanda histórica do reconhecimento do nosso direito autoral", acrescenta. 

Reconhecimento do roteirista e importância do processo 

Além da união dos roteiristas enquanto classe e do papel das associações e entidades, os profissionais também apontam que a melhoria das condições de trabalho passa pelo reconhecimento do papel do roteirista e por uma mudança no modo como ele é visto. "Para além dessas formas de união e atuação, a valorização dos roteiristas é também de responsabilidade de outros elos da comunicação, entretenimento e cultura. Passa pela divulgação e creditação correta das obras audiovisuais, pela imprensa, nos heads das salas de cinema e etc. Para que a sociedade civil de modo geral também entenda os processos de criação de uma obra audiovisual e comece a compreender a autoria como compreende a direção, por exemplo", cita Maíra. 

"Acredito que o primeiro passo para melhorar nossas condições de trabalho é mudar primeiro como o roteirista é visto. No Brasil, há um histórico de amadorismo: desde que nosso cinema começou, era comum que os idealizadores do projeto realizassem diversas funções ao mesmo tempo. Hoje em dia nosso audiovisual é maduro e profissional, mas essa mentalidade se manteve. É comum ver pessoas que não são roteiristas mexendo em roteiros e até mesmo ganhando crédito sem ter escrito uma linha, muitas vezes só por dar uma ideia ou inventar uma fala. A maioria dos roteiristas que tem algum respeito no mercado precisou migrar para outras áreas, como direção, produção e atuação", destaca Bia. "Já ouvi produtores chamarem roteiristas de 'meros prestadores de serviço' durante a negociação de compra de uma ideia original. É essa mentalidade que precisa mudar. Não somos prestadores de serviço, somos autores. Nossas ideias são a pedra fundamental de todos projetos. Enquanto isso não for respeitado, o Brasil não fará boas obras", conclui a roteirista. 

Dottori acha que hoje já exista uma percepção maior da importância do roteirista no processo e que houve um amadurecimento – mas, que em momentos-chave do processo, ainda existem barreiras que não deveriam estar ali. Ele cita exemplos: um roteirista que criou uma série e que teve que lutar para que seu crédito de criação estivesse entre os principais créditos. "Parece inacreditável que isso ainda aconteça, mas acontece e com certa frequência. Bem como matérias que saem na imprensa sem citar os autores que escreveram e criaram aquela obra. Outro ponto fundamental que ainda não evoluímos por aqui é a participação do roteirista durante os processos de ensaios, filmagem e edição. Ou seja, se nos Estados Unidos se consolidou muito fortemente a ideia de que a melhor figura para se tornar o 'showrunner' seja o criador e escritor da série, por aqui esse espaço está em disputa, e muitas vezes quem o ocupa é o diretor ou até o produtor, que exclui o roteirista desse momento – o que me parece um vício errado do mercado". 

Gautier e Thelma reforçam a necessidade da presença do roteirista ao longo das etapas. "No mercado estrangeiro é comum, por exemplo, que roteiristas acompanhem o set de gravação de seus respectivos episódios. Isso é feito para que caso haja qualquer tipo de alteração, desde uma frase do diálogo até a existência de um objeto de cena, a narrativa se mantenha intacta e continue fazendo sentido. Essa prática no Brasil é inimaginável e raramente acontece", diz Gautier. "Não quero dizer que o autor deva ser um controlador, mas acho importante ele ser chamado para acompanhar as etapas de sua obra. Ser ouvido, quando há problemas ou decisões importantes a serem tomadas, sobretudo no que diz respeito à narrativa. Se um episódio da série – ou capítulo, no caso da novela – ficou grande, por exemplo, quem melhor para apontar o que pode ser cortado ou passado para outro momento? Quem conhece melhor que todos aquela história que foi criada e escrita por ele? Outras questões são de ordem da direção e da produção e não acho que a gente tenha que se intrometer. Mas a estrutura da narrativa, a psicologia dos personagens, tudo o que faz parte do universo narrativo deveria ser da competência do autor", completa Thelma. 

"A entrada da Joelma Gonzaga na SAV e a eleição da regulação do VOD como pauta prioritária é um aceno para essa discussão que perpassa pela garantia e ampliação desses direitos"

Maíra Oliveira (Foto: Thaís Ramos)

Novo Governo 

É unânime entre os profissionais que a mudança de governo trouxe um cenário mais favorável para as mudanças desejadas. "A entrada da Joelma Gonzaga na Secretaria do Audiovisual e a eleição da regulação do VOD como pauta prioritária é um aceno para essa discussão que perpassa pela garantia e ampliação desses direitos, no novo contexto onde as plataformas se fazem tão presentes", analisa Maíra. "Mas pensando em autonomia, é ainda mais importante a criação e ampliação de editais focados em desenvolvimento, como aqueles já anunciados pela Ministra Margareth Menezes, e outros que reconheçam a pessoa roteirista como capital intelectual imprescindível para todo e qualquer projeto audiovisual, com um sistema de pontuação, por exemplo, que reflita essa importância. Essas e outras iniciativas só serão possíveis em uma parceria da sociedade civil, representada pelas entidades como ABRA, APAN e outras, com o Ministério da Cultura, como já vem se desenhando", acrescenta. 

"O retorno do Ministério da Cultura como pasta própria e independente, assim como a injeção de R$ 3,8 bilhões com a Lei Paulo Gustavo são formas de fortalecer o audiovisual brasileiro. Com mais verba é possível criar e produzir mais obras. Com mais obras sendo produzidas, surge a necessidade por mais profissionais que terão um maior poder de escolha, inclusive o poder de escolher trabalhar em suas próprias obras ou terceirizar seus serviços e talentos para canais e plataformas, e isso fortalece a classe como um todo. Ou seja, a partir das proposta apresentada pelo novo governo é possível fortalecer a classe como um todo e vislumbrar um futuro onde roteiristas terão mais força para ter seus direitos garantidos e seus talentos reconhecidos e devidamente remunerados", conclui Gautier. 

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