Os roteiristas do audiovisual não estão satisfeitos – e esta não é uma condição apenas no Brasil, e sim no mundo. Em Hollywood, a WGA (Writers Guild of America) entrou em greve no início de maio e, de lá para cá, o mercado acompanha anúncios de cancelamentos de produções, mudanças no status de séries, filmes e programas de TV e paralisações, entre outros efeitos diretos do movimento. A decisão foi tomada durante negociações salariais da categoria com os principais conglomerados do entretenimento. As demandas passam por questões cruciais para a classe, como a falta de pagamento por ganhos residuais e de ajustes de remuneração diante da inflação. Outro ponto está relacionado à Inteligência Artificial, que se coloca como uma ameaça em potencial para esses profissionais, e ao trabalho "freelancer", que cria a necessidade de que os roteiristas trabalhem em mais de uma série ao mesmo tempo.
E, nesta semana, a greve ganhou outro capítulo: o sindicato dos atores dos Estados Unidos, o SAG, obteve a autorização dos seus membros para declarar greve caso não cheguem a um acordo trabalhista até o dia 30 deste mês. Na última segunda, 5, 98% dos membros do SAG aprovaram a possível paralisação. No momento, a classe conversa com gigantes como Netflix, Amazon, Apple e Disney, entre outras, sob o guarda-chuva da AMPTP (Alliance of Motion Picture and Television Producers).
Cenário nacional
No Brasil, os roteiristas também têm suas próprias demandas. Em abril, Newton Cannito e Marcilio Moraes, roteiristas e ex-presidentes da ABRA (Associação Brasileira de Autores Roteiristas), se uniram para a criação de um manifesto pela valorização do roteirista nos editais públicos do audiovisual, que pede, essencialmente, que seja inserida nos editais, em todas as esferas, pontuação para os escritores do audiovisual, "medida urgente que não apenas fará justiça ao trabalho fundamental destes profissionais, mas também será decisiva para a melhoria da qualidade da nossa produção artística", segundo o texto do manifesto.
E, no Rio2C, um dos principais eventos de mercado realizados no país, uma das mesas teve como tema a valorização da autoria na produção audiovisual. Na ocasião, roteiristas renomados, como Lucas Paraizo, autor de séries como "Sob Pressão", da TV Globo, e a recém-lançada "Os Outros", do Globoplay, ressaltaram a importância de que os roteiristas sejam valorizados, remunerados e creditados como merecem. A participação desses profissionais ao longo de todos os processos da produção audiovisual, como a montagem, por exemplo, também foi uma demanda apontada.
Panorama inicial e contexto histórico
O roteirista, pelo Artigo 16 da Lei de Direitos Autorais (Lei n. 9.610, de 1998), é um autor da obra audiovisual. Mas vale ressaltar que "obra audiovisual" é um conceito complexo e bastante amplo. De coautoria – e não de autoria coletiva, como tem sido dito, onde você não consegue identificar a participação de cada autor. "No audiovisual, isso é mais claro. Assim como a função do diretor, são papéis definidos. Artistas intérpretes, atores e atrizes, também pleiteiam essa condição de criadores do audiovisual. O que é legítimo – dentro dessa visão de criação mais ampla, eles também estariam incluídos. Mas o roteirista é claramente o coautor da obra audiovisual. O direito autoral é constitucional. Todo o sistema jurídico autoral brasileiro gira em torno da figura do autor. Em tese, a posição do roteirista deveria ser consolidada como titular de direitos. A Lei de Direitos Autorais dá esse respaldo. Mas, na prática, o que temos visto é diferente", contextualizou Paula Vergueiro, advogada na área de Direito Autoral e advogada da GEDAR (Gestão de Direitos de Autores Roteiristas),em entrevista exclusiva para TELA VIVA.
Para Paula, a situação se agravou muito com o streaming e os mecanismos de distribuição digital. "Quando começa essa nova configuração do mercado, dominado pelas plataformas, as relações contratuais ficam bastante mexidas, tumultuadas, precarizadas e vulneráveis. O desequilíbrio é mais acentuado. Empresas de alcance global muitas vezes impõem regras de um sistema jurídico que não é o do país – como aconteceu no Brasil. O modelo de contrato do copyright, que não é o nosso, é apresentado. Isso causa um desarranjo no mercado porque os roteiristas ficam sujeitos a esses contratos. É quase como se não existisse a Lei de Direitos Autorais. No fim, prevalece o que convém para as plataformas. Embora tenhamos um arcabouço jurídico sólido, na prática o digital vem destruindo essas relações", afirmou.
Nesse caminho, a advogada faz um paralelo com a situação nos Estados Unidos: "Quando surge essa nova realidade, eles já estavam organizados. Nós, não. O Brasil não tem organização de mercado e, nos últimos anos, ainda vimos o financiamento público despencar. Ficamos na mão. Não tinha outra fonte de financiamento. Agora que estamos retornando. Mas o cenário ficou desequilibrado mesmo". E ela resume a situação: "As plataformas entraram em um mercado que não estava amadurecido em termos de produção e organização. E sendo a única fonte, 'deitaram e rolaram'. Com a necessidade das plataformas apresentarem novidade o tempo todo, o mercado cresce de tamanho, a base aumenta, e a mão de obra mais abundante acaba sendo menos valorizada. Vai ter sempre alguém que vai aceitar as condições impostas".
Direito de exibição pública para titulares de obras audiovisuais
Uma das grandes lutas da GEDAR é por estabelecer um direito que já é reconhecido no mundo inteiro – que é o pagamento dos "residuais", isto é, aqueles valores correspondentes às receitas que a obra segue gerando enquanto está circulando por diferentes janelas. "Esse direito que estamos brigando aqui é pela exibição pública para titulares de obras audiovisuais. Hoje, o roteirista recebe o cachê pela prestação de serviços, que engloba a cessão de direitos – e no caso das plataformas, é um modelo integral, por todas as modalidades de utilização, por tempo indeterminado. É uma remuneração limitada. A gestão coletiva de direitos, com arrecadação no Brasil, como é com os músicos no ECAD, é a briga que estamos tentando emplacar no Brasil. A Lei dos Direitos de Remuneração", detalhou.
Recentemente, movimentos nesse sentido foram vistos no mercado brasileiro. No Rio2C, a Secretaria de Direitos Autorais e Intelectuais, representada pelo secretário Marcos Souza, afirmou que uma das prioridades da pasta para este ano é justamente assegurar o direito de exibição pública para titulares de obras audiovisuais. "A lei hoje contém um desequilíbrio nesse campo da exploração da obra e uma dissonância com a legislação de outros países que possuem a mesma tradição jurídica que o Brasil. Está ocorrendo um fenômeno de obras audiovisuais brasileiras exibidas no exterior – países recolhem esses direitos mas, muitas vezes, não repassam, porque aqui no Brasil não temos isso garantido na lei. Essa é uma luta que vamos levar. Vai ser complexa e vai demandar união do setor como um todo. Mas já estamos conversando com associações para levar adiante uma proposta no Congresso Nacional", disse o Secretário durante a apresentação no Rio de Janeiro.
De lá pra cá, a Secretaria entendeu que havia um caminho para essa questão primeiramente no Projeto de Lei 2630/2020, o conhecido PL das Fake News, numa tentativa de incluir remuneração por conteúdo autoral divulgado pelas plataformas. Depois, houve outro encaminhamento para colocar a questão num substitutivo do PL 2370/2019, de autoria da deputada Jandira Feghali (RJ). "Estamos tentando fazer com que esse direito de remuneração seja incluído, mas a coisa não está andando do jeito que pensamos. Se não andar, voltamos para a ideia inicial, que é o projeto de lei autônomo para garantir o direito. Isso daria o conforto que a gente não consegue nas negociações individuais. O autor roteirista negocia o contrato com a produtora, mas a produtora negocia com a plataforma, por isso as condições são muito limitadas. Eu diria que é um contrato de adesão. Se você não assinar, passa para o próximo. O roteirista fica sem opção e sem margem de negociação", criticou Paula.
Valorização da autoria
Ela ressaltou que, para além da parte da remuneração, está a questão da valorização da autoria: "Temos visto um movimento que é bastante preocupante. Nem entrando em inteligência artificial ainda, porque existe essa preocupação, mas está acontecendo quase que uma diluição da autoria nesses processos de sala de roteiro, de 'produção criativa', como estão chamado. Precisamos encarar isso. Hoje as salas contam com muitas pessoas e os próprios produtores estão ali, trazendo consigo os dados. No final da contas, você perde aquela condição em que o autor tinha o controle criativo. Antes, a gente via na Globo 'uma novela de…'. Hoje, é 'uma série Netflix', 'um original Amazon'. Mas quem escreveu? Isso despersonifica a obra, tira o autor do lugar de destaque. Isso o fragiliza".
O direito autoral, no fim, tem duas dimensões: a patrimonial, de remuneração, mas também a moral. O direito do autor de ficar ligado eternamente à obra, ter seu nome nela. "O que vamos é um desrespeito a isso. Muitas vezes o roteirista é tirado até do material de divulgação. Não se fala em quem escreveu. O aspecto moral é uma questão bastante cara aos roteiristas", enfatizou.
Perspectivas de mudança
Paula acredita que o caminho para mudar passe por um fortalecimento da classe através de instituições que possam ser representativas, entender as condições de mercado e traçar linhas para políticas públicas e também para negociações coletivas, junto aos contratantes. "Internamente, é esse fortalecimento institucional da categoria, que viria através dessas associações que já existem e são bastante representativas, como a ABRA e a GEDAR", resumiu.
Mas, para ela, as expectativas são boas. "As Secretarias do Audiovisual e a dos Direitos Autorais estão muito atentas para essas questões. A perspectiva é, sim, de conseguir instituir o direito de remuneração dos criadores audiovisuais do Brasil, ainda neste Governo. Que consigamos essa lei e também uma regulamentação. Em termos de ações, observamos movimentos importantes, como a tentativa de inserir esses direitos primeiro no PL das Fake News e, depois, nesse substitutivo do PL da Jandira. Ou seja, existe uma movimentação no setor. E está todo mundo unido – roteiristas, diretores, atores, atrizes e também produtores. É uma perspectiva boa pelo compromisso que as autoridades estão assumindo e também os profissionais. E é um movimento internacional, o direito de remuneração existe em vários países do mundo. A pressão para que o Brasil venha integrar esse sistema de países que arrecadam direitos autorais é muito grande, ainda mais no contexto de distribuição digital e global", concluiu.