Roteirista brasileiro radicado nos EUA fala sobre os ganhos da greve e aponta caminhos para os profissionais do Brasil

(Foto: Reprodução YouTube)

Nesta semana, a GEDAR (Gestão de Direitos de Autores Roteiristas) promoveu em seu canal do YouTube uma live intitulada "Os roteiristas venceram? Lições da greve e do acordo nos EUA" com o objetivo de traçar paralelos entre as demandas dos roteiristas norte-americanos, muitas delas atendidas em um acordo firmado após cinco meses de greve da categoria, e a realidade dos roteiristas no Brasil – pauta que foi tema de um episódio do programa "Tela Viva em Foco" recentemente

A fala de abertura foi do roteirista Thiago Dottori, presidente da GEDAR, que ressaltou que a grande missão da associação é aprovar uma reformulação da lei de direitos autorais a partir do entendimento de que cada autor, criador e roteirista mereça uma remuneração que seja de acordo com o sucesso e a exploração da sua própria obra. "No Brasil, quatro categorias – atores, músicos, diretores e roteiristas – reivindicam esse direito, isto é, o de ser devidamente remunerado enquanto alguém estiver ganhando dinheiro explorando nossa obra. Com a virada do governo, que agora olha para o nosso setor como um setor-chave, importante economicamente e culturalmente, temos tido um bom diálogo com a Secretaria de Direitos Autorais do Ministério da Cultura e feito avanços, mas a lei ainda não foi votada", explicou. 

Paula Vergueiro, advogada consultora da GEDAR, fez a mediação do debate e apresentou um breve panorama do desenvolvimento do audiovisual nacional, ressaltando que o mesmo se deu de forma tardia. "O audiovisual independente no Brasil ganhou força há pouco mais de dez anos, com a Lei da TV Paga e a chegada dos editais que fomentaram a produção", relembrou, afirmando que, quando os streamings se consolidaram por aqui, encontraram um mercado imaturo, que não atuava na proteção dos autores roteiristas e dos outros talentos da cadeia. "Passamos por uma preponderância de investimentos dos streamings, ao contrário dos Estados Unidos, um mercado mais maduro, que pode se reorganizar para buscar um reequilíbrio das forças. Hoje, podemos olhar para os roteiristas americanos e tê-los como fonte de inspiração. A união e a colaboração de toda a classe arrancou melhores condições dos estúdios. É a importância dessa união de todos os roteiristas que compõem a cadeia e o sacrifício de alguns que estão em posições mais favoráveis para que os outros, que estão mais embaixo, também possam alcançar essa proteção", ressaltou. 

Beto Skubs é um roteirista brasileiro radicado nos Estados Unidos. Membro da WGA (Associação de Escritores da América) e roteirista de séries de sucesso como "Grey's Anatomy", ele pontuou que a greve começou essencialmente porque, com o advento dos streamings, os contratos ficaram defasados. "Antes, a gente sabia quanto ia trabalhar, quanto ia ganhar, tínhamos direitos e proteções e podíamos ter uma vida digna. Coisas básicas. O streaming transformou esse cenário. Quiseram que a gente fosse igual motorista de Uber, que ganha por corrida – e uma 'merreca' por corrida. A partir dessa ideia, 'fomos pra guerra'. A adesão na WGA foi quase completa, e o sindicato fez o trabalho de conscientizar todo mundo que a briga é coletiva. Claro que eu perdi dinheiro com a greve, mas não estive na greve por mim, e sim pelo cara que está lá embaixo. Quem está em cima sabe a responsabilidade que tem", declarou. 

Principais ganhos da greve 

O roteirista afirmou que os executivos da indústria "subestimaram a capacidade dos roteiristas de ouvir não". Isto é, achavam que a classe logo desistiria da greve, uma vez que as necessidades financeiras falassem mais alto. "Mas ouvir não é nosso dia a dia. Quem está na base, não tinha nada a perder", pontuou. Após um período de cinco meses, os roteiristas conseguiram um acordo com os grandes estúdios e plataformas. Skubs elencou os principais ganhos, como a garantia do mínimo de pessoas que devem ser contratadas numa produção para streaming e o mínimo de semanas de trabalho garantido que eles terão. "Se não garantir, o valor mínimo que o roteirista recebe é muito maior. É uma maneira de incentivar a contratação da sala de roteiro por períodos mais longos", avaliou. 

Outra questão importante foi decidida a partir de uma realidade que, segundo Skubs, prejudicava muito a indústria. Ele explicou: "Na TV aberta, é muito comum a figura do roteirista produtor, que vai para o set, contribui, participa até na pós-produção. No streaming, não tem mais isso. O que é péssimo para o roteirista, que deixa de ganhar, e para indústria. Se o roteirista só trabalhou no streaming, nunca foi para um set. Como ele vai evoluir e se tornar showrunner um dia? Como vai aprender a fazer uma série do começo ao fim? Não é só pela remuneração, é para a profissão ser sustentável, com incentivo prático e financeiro". Com isso, foi criado o título novo de writer producer, para esse profissional que ganha um pouco mais e tem entre as suas funções essa participação ativa na produção. 

A inteligência artificial também foi abordada na negociação. "Quando começou a greve, nosso foco nem era nisso, mas a tecnologia da inteligência artificial continuou a evoluir de uma forma que deu para ver que esses caras estavam prontos para jogar isso em cima da gente, e a gente nem tinha percebido. Já existiam casos de atores que estavam sendo escaneados para terem suas imagens reutilizadas e não eram nem avisados", contou o roteirista. O acordo estabeleceu estão que o roteiro audiovisual não pode ser assinado por uma inteligência artificial. "Nossa briga nunca foi para não utilizar a IA. Todo mundo sabe que a tecnologia não vai parar de se desenvolver. Ela pode ser benéfica para o estúdio, para o roteiro, para todo mundo. A questão é regulamentar como essa tecnologia pode ser usada. O computador não é artista e não tem direitos trabalhistas. Por isso o estúdio não pode usar o que for gerado por IA como se tivesse sido criado por uma pessoa", resumiu. 

Relação showrunner – roteirista 

Para Dottori, essa questão do roteirista no set é importante, e ele ressaltou que de fato o streaming acabou com essa prática. No debate, ele questionou Skubs se isso se impôs porque a plataforma não queria pagar para a pessoa estar no set ou se existiu uma disputa de poder interno pelo controle criativo da série. "No Brasil, não é uma regra absoluta que quem escreve vira showrunner da própria série. É evidente que ninguém conhece tão bem a obra quanto o roteirista. Mas existe uma disputa de poder que eu vejo dentro da própria cadeia criativa. Aqui, é comum que os diretores exerçam esse papel de showrunner, o que pra mim é uma distorção bem grande". 

Beto, então, avaliou: "O motivo pelo qual não é assim nos Estados Unidos é que nós encontramos um jeito de fazer o melhor produto possível. O mercado brasileiro devia aprender que é melhor para todo mundo deixar o roteirista cuidar do roteiro no set. Não queremos cuidar do trabalho do diretor, do produtor". Nesse sentido, ele comentou que outro ganho na negociação após a greve foi a definição da função do showrunner. "Essa mudança passa batida, mas é importante para nós. O roteirista do set não é necessariamente o showrunner. Esse roteirista é o writer producer, que está no set representando o showrunner enquanto ele está cuidando do resto das coisas, além de escrever a série. O streaming, para economizar, estava mandando todo mundo embora, exceto o showrunner. Aí, ele tem que ir para o set acompanhar a gravação de todos os episódios, a pós-produção, tudo. É impossível. O roteirista do set pode ganhar experiência e conhecimento para, futuramente, se tornar showrunner. O showrunner está sobrecarregado, ele quer ter esse writer producer no set para garantir a unificação e o tom da série". 

Barbara Harrington é uma roteirista norte-americana radicada no Brasil. No debate, ela trouxe à tona o fato de que, no Brasil, "qualquer pessoa", pode assinar roteiro. Ela explica: "O diretor às vezes vai para a sala de roteiro, fica lá uma semana, não escreve uma palavra e, no fim, assina o roteiro. O mesmo acontece com produtores, até atores. Você não tem esse controle – algo que, nos Estados Unidos, já é muito definido: para assinar o roteiro, tem que ter escrito. No Brasil, é completamente aleatório. Assinar o projeto é valor no currículo, no pagamento. É primordial que a gente conserte isso – até porque é a partir daí que decidimos quem vai receber pelos direitos autorais". 

Pagamento pelo reuso da obra  

Beto mencionou alguns outros ganhos da greve, como o fato de que, pela primeira vez, os estúdios mostraram dados de performance das produções audiovisuais para a WGA. Serão informações confidenciais, cujo acesso será liberado a um pequeno grupo de pessoas, mas é um caminho para que a conversa sobre qual a forma mais justa de precificar os residuals – que são aqueles valores correspondentes às taxas de reuso da obra – seja mais transparente. "O streaming pagava um valor padrão, baseado numa conta feita anos atrás, independente da performance do conteúdo. O streaming pagava muito menos do que a TV para poder exibir o produto muito mais. 'Grey's Anatomy' foi uma das séries que ficou mais tempo no Top 10 da Netflix e eu não ganhei mais dinheiro por isso – apesar da plataforma ganhar dinheiro com as assinaturas todo mês. Agora conseguimos esse reajuste". 

Força da união, para além do sindicato 

Beto ressaltou que o único jeito de brigar com os grandes estúdios e plataformas é se unir. "Não sei se precisa ser num sindicato, mas se todos os profissionais que o mercado demanda disserem que não trabalham mais nessas condições, eles têm que aceitar. Ou o produto deles decai. E se isso acontece, eles perdem dinheiro. É só assim que a negociação avança. É importante conversar com os estúdios, os produtores, diretores e explicar que, se a gente recebe melhor, o produto fica melhor, vende mais, e todo mundo ganha mais". 

Outras demandas 

Barbara ainda criticou o fato de que, hoje, os roteiristas recebem por entrega, e não têm salário fixo. "Nenhuma outra pessoa no audiovisual trabalha nesse esquema de entrega submetida à aprovação. Imagina se fosse assim com o ator? O diretor não gosta da cena e, naquele dia, ele não recebe. Ninguém trabalha assim. É um ponto muito forte para os roteiristas negociarem. Vivemos uma situação abusiva e singular, em que trabalhamos muito, sem receber". 

E, por fim, a roteirista analisou: "Falamos todo dia de inclusão e diversidade. Vemos grandes empresas com programas para roteiristas afro-descendentes e indígenas. Mas é impossível termos diversidade numa sala de roteiro se a gente não oferece condições para esses roteiristas trabalharem nas produções. Se não estamos pagando adequadamente as pessoas, todo esse papo de inclusão não significa nada. Na prática, você está dizendo que só pessoas ricas, com uma família que apoia, podem trabalhar como roteiristas. Para as outras pessoas, as que não tem recursos, é tchau". 

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