Cego é aquele que não quer ver

Fora de foco

O audiovisual faz parte da economia que mais cresce em todo o mundo: limpa, criativa, geradora de emprego, renda, propriedade intelectual e sonhos. Aquela que difunde de forma universal a cultura e a história de cada país, de cada povo. Mas não bastasse vivermos tempos míopes que levam à cegueira mesquinha do extremismo ideológico, a histeria transformada em perseguição a um setor importante para a economia e para a soberania nacional precisa acabar.

Mauro Garcia é presidente executivo da BRAVI – Brasil Audiovisual Independente.

Os mecanismos de fomento ao audiovisual brasileiro e a produção independente têm sido amplamente debatidos. A verdade é que o Brasil é rico em lendas e algumas delas dizem respeito aos recursos financeiros da União e ao fomento do audiovisual e das atividades relacionadas à produção independente.

Acredita-se, por exemplo, que os recursos disponíveis a cada ano, seja do Governo Federal, seja de estados ou municípios, a eles pertence. Ora, governos não são geradores de receita, de recursos financeiros. São meros arrecadadores e gestores dos recursos advindos de impostos, tributos pagos por cada um de nós, cidadão brasileiro e, verdade seja dita, de competência bastante discutível. Salvo aqueles que acham que podem imprimir moeda, mas isso é outra história.

A cada quatro anos, os governos recebem no processo eleitoral uma procuração, sob forma de mandato, para gerir os recursos gerados pela sociedade. Aqueles que acreditam que governos e governantes são donos do dinheiro e são mecenas estão redondamente enganados. A mesma crença, frágil de princípios, é aplicada ao fomento do audiovisual brasileiro.

O Fundo Setorial do Audiovisual, principal mecanismo de fomento do audiovisual brasileiro, é arrecadado pelo Governo Federal , mas oriundo de uma contribuição ao setor como indutor de parcerias público-privadas no melhor estilo neoliberal. Contudo, o que se vê de tempos em tempos são governos deliberando se darão ou não ao setor audiovisual os recursos que lhe pertencem, como se fosse um ato de bondade de um mecenas. E o pior é que esse raciocínio medíocre e sem qualquer fundamento de "dono do dinheiro" tem sido recorrente em diferentes esferas governamentais.

Outra lenda? Afirma-se que as produtoras independentes brasileiras auferem lucro a partir dos recursos dos mecanismos de fomento. Quem conhece, quem trabalhou no setor audiovisual sabe que as empresas não possuem rendimentos financeiros na atividade de produção das obras audiovisuais. Em todo mundo o que gera rendimento financeiro é a exploração comercial dos licenciamentos das obras nas diferentes telas de exibição, ou seja, na participação das empresas produtoras no direito patrimonial de uma série ou filme.

Mais um equívoco é a afirmação de que as produtoras têm "tamanho". Produtoras não têm tamanho. Elas têm projetos em execução ou em desenvolvimento. Uma vez que tenham diversidade de projetos se tornam grandes, mas se por ventura ficam alijadas dessa possibilidade encolhem, ficam pequenas. O conhecido efeito sanfona, a exemplo de Alice no Pais das Maravilhas quando ingere o elixir que a faz crescer ou encolher. Ora, Brasil, passou o momento de acordar! Produtoras são empresas empregadoras, independentemente de seu porte.

Aqueles que se travestem do poder a eles instituído para afirmar que empresas produtoras, grandes, médias ou pequenas, não receberão os recursos públicos de fomento – apenas lembrando, aqueles gerados pelo próprio setor – cometem, no mínimo, contradições de cunho econômico, pois estão falando de abortar a geração de empregos e renda.

Para quem já se deu ao trabalho de prestar atenção aos créditos finais de um longa-metragem ou série pode verificar o número de profissionais envolvidos, seja obra nacional ou estrangeira. Estamos falando de centenas de postos de trabalho a cada obra produzida. Uma temporada de uma série de animação brasileira tem em média 170 postos de trabalho diretos. Uma série de estúdio de animação internacional algumas vezes mais. Sem falar nas economias indiretas geradas a cada produção, como transporte, alimentação, hospedagem e assim por diante, além de impostos pagos aos entes municipal, estadual ou federal.

De fato, já passou da hora de sairmos das paupérrimas e equivocadas lendas a respeito do audiovisual. É absolutamente necessário encararmos a realidade de forma madura, sensível e engrandecedora para a cultura do nosso país. Deixemos de lado o olhar pudico, enviesado pela completa ignorância. O ditado pueril da vovó já dizia: "cego é aquele que não quer ver".

4 COMENTÁRIOS

  1. A Lei do SeAC proporcionou que a indústria audiovisual brasileira empregue, hoje, centenas de milhares de profissionais e agregue cerca de R$ 25 bilhões por ano à economia. De menos de 10 filmes por ano, no final da década de 1990, a produção nacional chegou a quase 200 longas-metragens nos últimos anos. A indústria audiovisual brasileira é essencial para o fortalecimento da nossa cultura, da nossa economia. Não há um país sério no mundo que não fortaleça o seu audiovisual.

  2. Uma correção necessária: a Lei do SeAC não proporcionou a criação de milhares de empregos ou a injeção de R$ 25 bilhões na economia; com todo respeito, essa conta é falaciosa e equivocada, induzindo ao erro e desviando o foco principal da discussão, que deve ser simbólico e não econômico. É preciso afastar certo fetichismo capitalista e vontade de se vender como "mercado".

    O agregado de R$ 25 bilhões envolve todas as atividades econômicas com CNAEs correlacionados ao audiovisual e parte expressiva é receita gerada pro conteúdo estrangeiro. Nele estão, por exemplo, as radiodifusoras (TV Aberta) que nada tem a ver com o SeAC, produção publicitária, conteúdo para mídias móveis e até produção para campanha eleitoral. Ainda não há um estudo que correlacione o real impacto econômico da Lei 12.485 (excluídos outros fatores), bem como o quanto cada real investido em fomento público ao audiovisual gera efetivamente receita, geração de empregos e tributos, descontando outros fatores. Os estudos atuais não se debruçam sobre a questão como deveriam e generalizam propositalmente o resultado. A crítica é necessária.

    Sobre o fomento público ao audiovisual, o artigo tem alguns equívocos, apesar de ser meritório.

    O articulista esquece que os recursos advindos dos artigos 1º e 1º-A, assim como do FUNCINE, são oriundos do imposto de renda e não vem do setor audiovisual; grande parte vem de empresas públicas ou sociedades de economia mista ou empresas que foram estatais e a União possui expressiva participação acionária, sejam empresas como BNDES, Petrobras, Vale, MRS Logistica etc. É receita orçamentária; aliás, renúncia de receita.

    A União, e os estados e municípios, também investem muitos recursos orçamentários a fundo perdido. Se deixa de investir em outros setores para se apoiar a fundo perdido, neste caso orçamentário, no audiovisual, que de longe é o segmento cultural mais beneficiado.

    É possível discutir que os recursos dos art. 3º e 3º-A são originários da atividade audiovisual, assim como o art. 39, mas são essencialmente voltados à tributação sobre conteúdo audiovisual estrangeiro ou remessa de royalties e uma parte expressiva refere-se a "transmissão de eventos esportivos", algo que não se correlaciona com a atividade das produtoras brasileiras (independentes). A política neste caso é Robin Hood.

    Sobre a CONDECINE, realmente ela é uma contribuição de intervenção no domínio econômico, mas isso não tem nada a ver com liberalismo ou neoliberalismo; pelo contrário: liberais são contra intervenção e políticas redistributivas. A CONDECINE é um mecanismo redistributivo, típico de sociais-democracias; em geral são transitórios para correção de falhas de mercado; a nossa não tem duração prevista em lei (por enquanto…).

    Ainda sobre a CONDECINE, há uma certa visão romântica e equivocada sobre o tributo (que não é imposto, é CIDE). Primeiro, que cerca de 85% da CONDECINE não é gerada pelo setor audiovisual e sim pelas empresas de telecomunicações; algo como 40% de toda a CONDECINE vem da mera habilitação anual dos chips de celulares, tablets etc (só esse valor chega próximo a R$ 500 milhões).

    Além disso todo equipamento como antenas de telefonia celular ou outras contribuem; com a introdução do 5G esse valor vai subir expressivamente pois a tecnologia requer mais antenas.

    Juridicamente é bastante questionável a forma de tributação da CONDECINE, pois se refere a "prestação de serviços que se utilizem de meios que possam, efetiva ou potencialmente, distribuir conteúdos audiovisuais nos termos da lei que dispõe sobre a comunicação audiovisual de acesso condicionado". Esse "potencialmente" é juridicamente muito frágil e o que ocorreu foi um acordo com as Teles para que elas tolerassem isso na negociação legislativa, ganhando outras compensações na lei.

    Quando destacamos ou excluímos os 85%-90% oriundos das empresas de telecomunicações, nos deparamos com 15% a 10% dos outros fatos geradores da CONDECINE. Parte desse valor vem da CONDECINE REMESSA, como visto royalties até de transmissão esportiva e de eventos.

    Um percentual muito baixo é da CONDECINE TITULO e nessa rubrica estão uma massa de obras publicitárias, feitas por produtoras que não recebem NENHUM incentivo, além de obras estrangeiras que são veiculadas em todas as plataformas. A contribuição da produção brasileira ainda inclui as produções próprias da TV Aberta e da TV por Assinatura, muitas vezes sem atuação de produtoras independentes (vide Globo e Record).

    Então dizer que a CONDECINE é oriunda da atividade do próprio mercado audiovisual e, especialmente, das produtoras independentes não é real. É bonito falar isso em mesa de bar, mas não sustenta uma discussão no Ministério da Economia e por isso deve ser evitado. O debate deve partir de outras premissas.

    Por isso é preciso sair dessa visão econômica equivocada e ter noção que a política audiovisual para um país periférico como o Brasil é simbólica e não meramente econômica. Se for discutir sustentabilidade econômica como pilar, não vence uma discussão técnica. Porém a simbólica está na Constituição Federal e da Convenção da Diversidade Cultural da Unesco, que nos permite fomentar nossa "indústria"(sic) cultural, adotar medidas regulatórias e mecanismos de exceção cultural.

    É preciso assumir que uma parte razoável de produção será feita a fundo perdido, não é mercado e é simbólico-cultural. É assim no mundo todo e nesse jogo possuem papel relevante as TVs do campo público e plataformas públicas de streaming além do audiovisual educativo; eventualmente também com a constituição de uma pequena mas eficiente rede pública de exibição (experiência coletiva) ou parceria público-privada com pequenos exibidores.

    Isso, claro, não quer dizer que devemos abdicar de construir um mercado audiovisual, em que exista uma atividade econômica real, ou seja, mecanismos de saída para que empresas que cresceram vivam da sua própria atividade e os recursos sejam destinados a novos entrantes, à regionalização e aqueles que não fazem produção comercial. Para exemplificar "fulanizando", se for discutir "mercado", então não há sentido de injetar uma soma expressiva a fundo perdido (real ou disfarçado)em empresas consolidadas como Conspiração, O2 ou Gullane, que não podem ter o mesmo tratamento de uma Calibã ou de uma pequena produtora de Alagoas, Roraima, Espírito Santo, Paraíba, Maranhão ou Santa Catarina. Não é justo em termos de política redistributiva continuar com o modelo atual.

    As empresas consolidadas devem se vocacionar para usar crédito, como qualquer atividade econômica, especialmente aquelas que são constituídas como Sociedades Anônimas e pagam lucros e dividendos. Elas também podem reservar parte do seu lucro para investir em produções arte ou "não comerciais", ou se cooperativar com outras produtoras de grande porte para isso, em fundos privados que apoiem roteiristas iniciantes, projetos alternativos, políticas de inclusão etc. Isso é responsabilidade social e mecenato de verdade.

    Por outro lado as agências de fomento devem auxiliar as empresas a serem "empresas" e não meras repassadoras de recursos a terceirizados, vivendo de projeto a projeto. Esse apoio estratégico é essencial para que as pequenas que desejem crescer economicamente possam efetivamente crescer e não apenas sobreviver.

    Além do crédito, as empresas de porte podem e devem participar das ações de investimento; mas precisa ser investimento de verdade e não a fundo perdido disfarçado. A performance deve ser exigida, deve trazer mais recursos próprios, usar merchandising, product placement, capital de risco etc. Não faz sentido o estado comprar 85-95% do risco (na verdade é 100%)do risco dessa produção que se vende no projeto como comercial mas não é de fato e o produtor sabe bem disso.

    O recurso público a fundo perdido deve ser direcionado a outro tipo de obra, com contratos e prestação de contas simplificado, e não se misturar tudo como faz equivocadamente a ANCINE atual, o que gera contratos impossíveis e uma burocracia infernal.

    O fomento público também não pode ser direcionado apenas à produção; é preciso investir na capacitação,na pós-produção, no licenciamento e na exposição e exportação desse ativo intangível que é simbólico e não apenas econômico.

    Também é injusto que os serviços de VoD não paguem CONDECINE e não sejam regulados, com adoção de medidas compensatórias. Atualmente, por uma IN de 2012 da ANCINE, eles devem pagar CONDECINE como "outros mercados", mas pelo visto a maioria não paga e ficou por isso mesmo. Se a cobrança é ilegal (instituição de tributo por IN), pode ser o caso de repetição de indébito e restituição em dobro para quem pagou, com responsabilização de quem aprovou. Se for legal, quem não cobrou tem que se explicar por dano ao patrimônio do FSA (toda CONDECINE é receita do FSA). Logo, alguém na ANCINE deveria responder desde 2012, não adianta fugir desse debate e algo está muito errado nisso.

    Também não se pode fugir da questão dos direitos. É preciso garantir, sim, a propriedade intelectual aos produtores, assim como os diretores, argumentistas/roteiristas e intérpretes precisam ser remunerados pois sofrem mais valia e a legislação os protege.

    A garantia dos direitos de propriedade intelectual é vital quando se tem recursos públicos envolvidos; ela possibilita que as obras "não fiquem fora do catálogo", que quem produziu possa garantir que ela seja vista, tirando poder absoluto do distribuidor ou programador. Por outro lado, também garante royalties e "cauda longa" aos produtores e equilibra a remuneração de argumentistas/roteiristas, autores e intérpretes.

    Por fim, o governo federal não tem uma política para o audiovisual no âmbito na Secretaria, do CSC ou do CGFSA. Só faz repassar verba de maneira aleatória e pouco técnica, sem estudo de cenários e impactos, sem proposta. Arbita valores por rubricas/linhas. A Ancine, por sua vez, é uma operadora burocrática estéril de ideias. O que o TCU provou é que ela girou mal a própria máquina por anos; não conseguiu ser reguladora, falhou no fiscalização/prestação de contas e executa uma política de fomento pouco sistêmica e ineficiente em termos operacionais.

    O modelo precisa ser inteiramente reformulado e o pior cego é aquele que não quer ver isso.

    A reformulação vai incomodar, quebrar feudos, redistribuir recursos, desmontar estruturas ineficientes e corporativas e, acima de tudo, terá que vencer a preguiça intelectual. Caso contrário o audiovisual continuará vivendo de espasmos a depender do pires do governo da vez.

    E sendo um governo autoritário, seja de esquerda ou de direita, sabemos como isso termina.

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