A indústria audiovisual cumpre, hoje, um papel central no desenvolvimento de qualquer país, e não é diferente no Brasil. A expansão da capacidade produtiva e do alcance de obras brasileiras em um mercado efetivamente global é um desafio que requer uma abordagem ampla e coordenação entre agentes públicos e privados. No âmbito microeconômico das empresas, de onde partem as estratégias de negócio que viabilizam a produção local, muito tem sido feito e há muito a fazer em termos de gestão e governança, inovação de formatos e linguagens, busca de sinergias e cooperação intrassetorial, inclusive para acessar novas vias de financiamento, entre outras medidas que demandam trabalho e recursos, mas estão ao alcance do setor.
Ainda assim, a experiência internacional indica que as políticas públicas seguem sendo cruciais para o sucesso dessa atividade, mesmo em países ricos. Em parte, isso se deve à natureza da própria atividade. Produzir um filme é algo arriscado. Obras caríssimas naufragam rotineiramente, em última análise por uma questão de gosto. Sem apoio oficial, quem investiria nessa atividade, com tantas opções menos arriscadas à disposição? Grandes empresas, talvez, pois podem captar recursos a juros razoáveis e investir pesado em promoção, mas elas são poucas. Pouquíssimas, na verdade. Daí a tendência à concentração econômica e à padronização estética, que marca essa indústria desde sempre. Políticas públicas servem para mitigá-la.
Outra característica dessa indústria é sua dependência estrutural dos direitos de propriedade intelectual – PI. Não é exagero dizer que os direitos patrimoniais sobre uma obra concentram todo seu valor de mercado, que equivale ao que seu titular puder arrecadar com sua exploração comercial, em qualquer mídia ou território, pelo prazo de proteção exclusiva, de 70 anos. Esses direitos pertencem, em regra, a quem financia a produção, o que implica em um aporte impensável para produtores independentes. O acesso a políticas públicas, como o FSA, é um dos únicos caminhos viáveis que tem o produtor local para deter os direitos sobre as obras que produz, retendo no país seu valor econômico. E deter PI é vital para as economias contemporâneas.
No Brasil, a história da indústria do cinema e do audiovisual e de sua relação com as políticas públicas de fomento é uma interminável sucessão de picos e vales. Há períodos em que governo, mercado e sociedade parecem compreender a relevância desse setor, não apenas como expressão cultural e atividade econômica, mas como elemento central de projeção simbólica do país no plano internacional – ou soft power. Infelizmente, são raros. Mais frequentes são os longos hiatos, onde o audiovisual – como a indústria criativa, de forma geral – desaparece da lista de prioridades de um país desconfortavelmente acomodado à armadilha das commodities.
Nem sempre o abandono é explícito (ou mesmo violento, como em diversos momentos da nossa história). Normalmente, é velado, e se revela na miséria orçamentária, nas rupturas institucionais e no discurso autodepreciativo de que "filme brasileiro não tem público", cada vez mais descolado da realidade. Por isso é tão importante valorizar o período relativamente longo de estabilidade nas políticas públicas do setor, iniciado com a MP 2228-1, de 2001. Em duas décadas, (res)surgiu uma indústria que hoje adiciona quase R$ 30 bilhões/ano à economia brasileira, responde por 0,5% do PIB, rende R$ 9 bilhões/ano em impostos e gera mais de 300 mil empregos. É muita coisa.
As linhas de investimento público no audiovisual são autossustentáveis, alimentadas principalmente pela CONDECINE, tributo cobrado apenas de agentes que participam desse mercado. Os resultados são excepcionais: antes da criação da Ancine, em 2001, a produção brasileira não passava de 20 longas-metragens por ano e agora gira em torno de 200. Em 2010, as obras brasileiras ocupavam menos de 1% da grade dos canais de TV por assinatura e, hoje, esse índice beira os 20%. Tudo isso decorre do trabalho e do investimento de pessoas e empresas, com o apoio de políticas públicas. Não é favor, é obrigação legal. Muitos outros setores se valem de políticas de fomento, sem uma fração do escrutínio reservado ao audiovisual.
Seja como for, os próximos anos oferecem ao Governo Federal a chance de retomar essa política e consolidar a indústria do cinema e do audiovisual brasileiros sobre pilares sólidos e sustentáveis. Há novos desafios no horizonte. A concentração de poder de mercado nunca foi novidade no setor, mas a internet globalizou essa tendência. O fosso econômico entre os produtores locais e seus parceiros de negócio apenas se ampliou nos últimos anos. A regulação setorial tem como objetivo central justamente a manutenção de um ambiente concorrencial equilibrado e juridicamente seguro, que reduza o impacto das assimetrias e amplie as oportunidades de investimento, desenvolvimento e rentabilização do conteúdo brasileiro.
Para além da produção de obras, deve-se buscar o fortalecimento do setor como um todo, que é estratégico para o Brasil por diversas óticas – econômica, cultural, geopolítica – e do qual a própria Constituição cuida com especial atenção. Assim, uma política consistente de apoio ao audiovisual se baseia em pelo menos três pilares: (i) fomento à produção brasileira, com a contribuição de todas as empresas que exploram o mercado local; (ii) geração e retenção, no Brasil, da maior parcela possível dos direitos de propriedade intelectual sobre obras produzidas no país; e (iii) garantia de presença de conteúdo brasileiro independente em todos os meios e mercados. Sem isso, a produção independente brasileira pode tornar-se residual, salvo como hub de prestação de serviços em uma cadeia global.
Importante lembrar que o audiovisual, como qualquer atividade industrial, envolve uma complexa dinâmica de produção e distribuição, em um contexto de concorrência global. A eficiência com que esses fatores de produção ingressam e circulam da cadeia produtiva impacta diretamente na estrutura de custos da indústria e em sua competitividade, como seria em qualquer setor. Ao MinC e à Ancine, cabe formular e executar as políticas públicas, mas seu sucesso depende do engajamento de outros órgãos: MDIC (infraestrutura, política industrial, apoio à exportação); Fazenda (lógica tributária, defesa da concorrência); Itamaraty (diplomacia cultural, cooperação, tratados); Justiça (combate à pirataria); etc.
A indústria audiovisual é um dos motores da economia criativa, cuja contribuição para o PIB é em torno de 3%, mais do que o setor automotivo, segundo o recente "Mapeamento da Indústria Criativa", da Firjan, e reforçado pelo "PIB da Economia da Cultura e das Indústrias Criativas", realizado pelo Itaú Cultural em parceria com a UFRGS. São poucos os setores intensivos em capital intelectual de nossa indústria com o alcance de mercado que as obras artísticas e literárias brasileiras possuem, há muito tempo, no mundo inteiro, na música, nas artes visuais, no design e, também, no audiovisual. Há um longo caminho a percorrer, isso é certo, mas que será menos árduo em um ambiente normativo-institucional que se adeque às necessidades específicas desse mercado.
Vale a pena. O audiovisual é a linguagem do nosso tempo e múltiplas oportunidades surgem nesse contexto, mas os desequilíbrios gerados por assimetrias competitivas podem comprometer as chances das empresas brasileiras em um mercado cada vez mais desterritorializado, tanto na produção, quanto no consumo. O Brasil é um mercado importante e possui muitas vantagens comparativas na produção de bens simbólicos. Deve se valer do fato de que este é um dos poucos setores da economia onde o apoio direto ao produtor local não constitui violação às regras do comércio internacional. Pelo contrário, é atividade inerente ao próprio conceito de soberania, que começa e se realiza na cultura.