Produção remota e demanda por interações sociais explicam boom de realidade virtual na pandemia

O South by Southwest (SXSW), conjunto de festivais de cinema, música e tecnologia, teve na última semana sua primeira edição totalmente virtual. O evento, que é realizado desde 1987 em Austin, Texas, neste ano foi promovido por meio de uma plataforma online, com cinco canais para que o público pudesse acompanhar as palestras, shows de música e espetáculos de stand up comedy, entre outras atividades.  

Uma das verticais em destaque na programação é o Virtual Cinema, na qual as melhores experiências de realidade virtual são selecionadas. A produtora Fernanda Martins, que recebeu o Emmy em 2020 pela experiência de VR "A Linha", acompanhou o evento e falou com exclusividade a TELA VIVA sobre as novas tendências que prometem revolucionar o futuro desta área que, ela reforça, intensificou seu crescimento no último ano pela combinação de dois fatores: possibilidade de produção de conteúdo totalmente online, isto é, sem a necessidade de locações ou elenco, somada à situação de pessoas em isolamento, demandando por novas atividades e com necessidade de interações sociais. 

Atualmente, são dois os principais modelos de negócio da realidade virtual: espaços físicos para o VR e o home use, com o público adquirindo seus próprios equipamentos para consumo de conteúdo em casa – e este passou por um boom em 2020, especialmente após a chegada da pandemia de Covid-19. E não foi só a compra que aumentou – as produções também. "As empresas produtoras de headsets, que costumavam investir em produção de conteúdo, pararam de fazê-lo porque a realidade virtual e a animação cresceram muito no período, sendo praticamente as duas únicas áreas que seguiram produzindo normalmente. Eu trabalhava na ARVORE, empresa brasileira de experiências imersivas (criadora da premiada 'A Linha') e, assim que a pandemia chegou, imediatamente passamos a trabalhar online e a produtividade aumentou muito no virtual quando comparada ao espaço físico", diz Martins. "A tendência é que os equipamentos fiquem cada vez mais baratos para o consumidor final. No Brasil, deve levar uns três, quatro anos para que eles tenham essa baixa de preço. Um dia, os óculos de realidade virtual vão substituir os smartphones", aposta. 

Por outro lado, a área do mercado de realidade virtual mais afetada durante a pandemia foi a LBE (location based entertainment), os espaços físicos dedicados às experiências. "Além de fecharem suas portas por meses, muitos acreditam que haverá uma resistência em compartilhar headsets até que a pandemia acabe definitivamente", explica a produtora. A China, porém, já abriu quase 50% dos locais – dos que sobreviveram – e, segundo Flora Li, da Ásia Internet Holdings, há expectativa de recuperação e crescimento desse mercado. "Trata-se de um cenário de oportunidade principalmente em função dos baixíssimos valores de aluguel, que representavam o maior custo do negócio. Eddie Lou, da Sandbox, concorda que há mais players no mercado do que antes da pandemia. O mercado na China está mais horizontal à medida que outras áreas buscam a realidade virtual como alternativa, principalmente na área de educação e treinamento de pessoas", relata Martins a respeito do que ouviu no SXSW. 

É possível criar mudanças reais a partir da realidade virtual? 

Esse foi o tema do painel com a jornalista Nonny de la Peña, considerada "madrinha" da realidade virtual; o artista e diplomata Gabo Arora e Tiffany Kieran, todos veteranos da indústria. "Nonny acredita que a dualidade da presença que a RV proporciona pode levar a mudanças reais. Ela citou um projeto que aponta que 40% dos moradores de rua nos Estados Unidos são da comunidade LGBTQI+, rejeitados pela família. Ao presenciar essa situação em realidade virtual, podendo estar 'na pele' dessas pessoas, até os grupos mais conservadores pensaram em soluções para acolher esses grupos", conta. "Mas Nonny alerta: a ideia que a realidade virtual é uma 'máquina de empatia' não acontece sem um excelente storytelling. Gabo, que trabalhou para as Nações Unidas, disponibilizou seu filme em RV sobre mulheres árabes para ajudar a receber doações nas ruas. Ele notou que os pontos de doação que dispunham do filme angariaram o dobro de doações em relação aos pontos que não utilizaram da tecnologia. Ao que parece, o impacto da presença nos conteúdos imersivos pode ser capaz de gerar transformações reais", completa. "Sem dúvida o elemento mais importante da realidade virtual é a presença. Você não está 'de fora', como observador, e sim vivendo as situações, exatamente como estamos habituados na vida real", enfatiza. 

Martins cita ainda outra discussão relevante: a acessibilidade em conteúdos de realidade virtual. "Como ainda não há regulamentação específica, há espaço para avançar em boas práticas no desenvolvimento de conteúdos", pontua. Ela conta que o professor Christian Vogler, que é deficiente auditivo, observou que equipamentos usados por deficientes por vezes atrapalham o uso de headsets. Já Christopher Pantoe, head de programas de acessibilidade na Google, salientou que as legendas ainda precisam ser melhor integradas para não interferir nas experiências – o formato em "duas linhas", como estamos habituados, não serve quando o conteúdo está em todos os lados. "Para ele, o processo de inclusão de deficientes deve ser intencional, planejado. Outros recursos estão em implementação, como modos de jogo com apenas uma das mãos e mudança de cores para que daltônicos possam melhor diferenciar os objetos", acrescenta. 

Experiências em destaque na programação 

A seleção do Virtual Cinema contou com a experiência brasileira "Na Pele" ("Under the Skin"), documentário interativo sobre a vida de três moradores do Complexo do Alemão. O público pode passar por situações como encontrar a polícia, esconder-se em um bar ou conhecer novos personagens, tais como uma mãe que perdeu um filho assassinado por uma bala perdida e uma dançarina que ensina ballet para crianças. Para Martins, "a sensação de se colocar literalmente no lugar dessas pessoas é muito potente". 

A vencedora do ano foi a experiência de Taiwan "Samsara Ep1", que conta a história de pessoas que precisam encontrar um novo planeta depois da Terra ter sido destruída. A produtora brasileira comenta que outros destaques foram "Biolum", um mergulho no oceano onde você pode interagir com criaturas luminosas; "A Promise Kept", sobre uma sobrevivente de Auschwitz que deve cumprir uma promessa para mulheres que salvaram sua vida; e "Poison", que te coloca no lugar de uma molécula de coronavírus invadindo um corpo humano. 

Realidade virtual no futuro dos festivais 

Martins acredita que o grande destaque em 2021 foi o ambiente virtual que simulou as ruas de Austin, desenvolvido exclusivamente para o evento, através do aplicativo VRChat. Assim como no mundo real, foi possível participar de eventos, festas, shows e descobrir novos lugares caminhando pela Congress street e Red River street. "Mesmo com um número baixo de headsets no Brasil, a comunidade brasileira conseguiu encontrar-se virtualmente na festa de encerramento do evento", garante. 

A realidade virtual já está no presente e certamente estará no futuro dos eventos mundo afora. "Os principais festivais já têm sessão de realidade virtual, como Sundance, Tribeca e Veneza. Inclusive Veneza, este ano, fez pela primeira vez a parte de VR em cidades satélites. Em quase 80 anos de festival, foi a primeira vez que fizeram algo que não foi na sede, na Itália", menciona a produtora, que aposta que o próprio SXSW vai usar essa plataforma nas próximas edições, democratizando, assim, o acesso ao evento: "Um ticket para o SXSW presencial custa mais de mil dólares e, para a edição online, custou menos de 200. É uma maneira de atingir um público muito maior e de diferentes partes do mundo".

O futuro dos eventos foi um dos grandes temas do festival este ano e a aposta geral é por um formato híbrido, com atividades presenciais e outras virtuais – estas, podendo fazer uso da realidade virtual para tornar a experiência o mais realista possível para os participantes. 

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