"Quanto mais possibilidades do feminino em tela, mais a gente se sente capaz", afirma a multi-artista Alice Marcone

Alice Marcone é uma multiartista: roteirizar, escrever, cantar, compor e atuar são apenas alguns de seus talentos. Aos 25 anos, ela já esteve nas salas de roteiro das séries "Noturnos", do Canal Brasil; "Todxs Nós", da HBO; "Manhãs de Setembro", do Amazon Prime Video; e "De Volta aos 15", da Netflix, além do reality show "Born To Fashion", do canal E!Entertainment. Na música, canta e compõem canções de sertanejo, e é a voz por trás de hits como "Noite Quente". 

Em setembro passado, Alice conversou com o TELA VIVA sobre a demanda por conteúdos LGBTQIA+ impulsionando a diversidade nas obras audiovisuais. Na ocasião, ela, que é uma mulher trans, reforçou: "A ausência histórica desse tipo de representatividade deixou um espaço aberto para novas narrativas e perspectivas. Acho muito importante pautar que essa demanda por novas representações e narrativas vem também como consequência desse movimento – ainda incipiente, mas real – de uma maior inserção das pessoas LGBTQIA+ no mercado. Quando essas pessoas trabalham, elas se transformam em público consumidor, com suas próprias exigências, e isso também gera mudanças nas demandas das produções audiovisuais. Por mais que tenhamos resistências, retrocessos e uma corrente reacionária bem forte no país, essa transformação nas demandas do consumidor é uma verdade cada vez mais geral do brasileiro. Essa mudança não só precisa acontecer, como está acontecendo e não será refreada". 

Agora, meses depois da exibição de "Born To Fashion" pelo E! – a produção original do canal foi o primeiro reality show do Brasil só com candidatas transgênero, que teve como objetivo revelar o novo rosto fashion do país – e ótimos índices de audiência (a exibição do episódio de número um logo registrou quase quatro vezes mais audiência do que a média do canal no horário nobre), Marcone reflete: "Acho que a presença da diversidade nos espaços criativos e de produção de conteúdo gera inovação e produtos novos que a população demanda de alguma forma. O sucesso de 'Born To Fashion' é um exemplo disso. As pessoas querem se ver representadas – todas as pessoas. Independente de serem mulheres cis ou trans, nós queremos ver diversidade na tela. Quanto mais possibilidades do feminino em tela, mais a gente se sente capaz, se reconhece e constrói as nossas identidades. Quanto mais diversidade temos dentro dos processos criativos, mais somos capazes de nos comunicar com a população que vai consumir os conteúdos". No entanto, ela ressalta: "Sou a favor que essa diversidade esteja presente em vários produtos, não só nos que tratam do tema, porque assim alcançamos cada vez mais gente. É isso o que acontece quando temos perspectivas diferentes, mais plurais, diversas e abrangentes do que uma única que se reflete. É algo que se reflete no produto final". 

Protagonismo LGBTQIA+ 

Dentro desse assunto, Marcone avalia: "Já avançamos bastante em relação ao que tínhamos há poucos anos. E foi um avanço rápido, mas eu ainda acho que temos várias batalhas a vencer, especialmente na TV aberta. Quando a gente vê por exemplo 'A Força do Querer' (novela da TV Globo que foi reprisada recentemente pela emissora), uma trama que tem a temática trans em primeiro plano, estamos vendo de fato uma produção que está abordando esse tema, mas na qual pessoas trans não fizeram parte do processo criativo, não assinam roteiro. Assim como a atriz, que é uma mulher cis. É um exemplo muito grande de como esse tema começou a aparecer na mídia, mas não necessariamente reflete uma inserção dessas pessoas no mercado de trabalho". De todo modo, ela reconhece que a presença de uma personagem trans em uma novela do horário nobre da TV aberta traz uma série de ganhos: "A novela teve um impacto muito grande para os pais de pessoas trans. Acho isso maravilhoso, então não tiro o mérito da novela. E havia uma atriz trans no elenco também. Em uma personagem menor, claro, mas estava lá. Então acho que aos pouquinhos a gente vai mudando o cenário". 

E artista prossegue: "Quando falamos em mercado de trabalho, um ponto importante é a questão do transfake (o ato de um ator ou atriz cis interpretar um personagem trans). A principal problemática aqui é a construção de sentido. Quando o Rodrigo Santoro interpreta uma travesti em 'Carandiru', a gente entende que por trás da travesti tem um homem, com corpo construído para ser um galã, e que está lá vivendo uma identidade de gênero feminino. Isso resume nossa personalidade nesse lugar de farsa, de performance, de roupa e tudo mais. O transfake é o que mais me preocupa". Para Marcone, nesse sentido ainda falta avançar muito nas grandes mídias, nos grandes projetos de Hollywood, na TV aberta – na TV fechada e no streaming, ela afirma já perceber uma preocupação muito grande de ter pessoas trans nas equipes – especialmente nos projetos que trazem essa temática – em cargos como roteiristas, diretores e na cadeia de produção como um todo. "No 'Todxs Nós', por exemplo, houve o cuidado de colocarem pessoas trans em toda a equipe, na frente e atrás das câmeras. E nem que fosse em cargos de assistência, para uma experiência educativa mesmo. Afinal, pessoas trans são excluídas das escolas, não podemos ignorar esse fato", conta. 

A roteirista revela que, no começo da carreira, sentiu medo de possivelmente ficar "marcada" e só conseguir trabalhar com projetos que falassem de transgeneridade – mas que isso não tem acontecido: "Pelo contrário, tenho percebido uma abertura muito grande. Escrevi 'Noturnos' para o Canal Brasil, por exemplo, que é uma série de terror. A transgeneridade não está na premissa da série. Por mais que, quando eu esteja na sala de roteiro, esse tema apareça de uma forma ou de outra, não é a questão central. 'De Volta aos 15', que escrevi recentemente para a Netflix, é uma série teen, também não fala do assunto. Então percebo, sim, uma abertura maior do mercado para profissionais trans mesmo quando o tema não é esse". 

Trabalho adaptado na pandemia 

Se por um lado o período de pandemia que ainda estamos enfrentando trouxe dificuldades para o trabalho de Alice Marcone como cantora – afinal, é impossível fazer shows e as gravações de videoclipe ficaram mais custosas e trabalhosas por conta dos protocolos e cuidados necessários – o trabalho como roteirista fluiu bem: "Foi um processo de adaptação fácil. As salas de roteiro continuaram acontecendo virtualmente. Tive a sorte de seguir com projetos que já estavam acontecendo e começar novos também. Mas como atriz e cantora, foi bem difícil. Eu me senti muito afetada. Foi importante pra mim continuar nas salas de roteiro e manter esse fluxo criativo de uma maneira constante. De fato, foi o que me manteve produtiva". 

Os próximos trabalhos nos quais Marcone esteve envolvida que serão lançados para o público são as séries "Manhãs de Setembro", que chega ao catálogo do Amazon Prime Video ainda este ano, e "De Volta aos 15", produção original da Netflix que encontra-se em fase de filmagens – esta é uma série baseada no livro homônimo de Bruna Vieira e conta com a participação de Alice não só na equipe de roteiro, mas também como atriz. "Para mim, o processo de adaptação dos livros para a série não foi muito diferente do trabalho em outros projetos. Normalmente, sou roteirista contratada para desenvolver os textos de ideias que já existem. Então eu recebo na mão o argumento. A história, claro, muda muito até a concepção final, mas de qualquer forma eu sempre me sinto adaptando alguma coisa. Com o livro, tínhamos muito mais material, uma história já construída, avançada. Então foi até mais fácil", explica. "As salas de roteiro foram todas de forma remota, e acho que nos adaptamos muito bem. Sinto que estou economizando tempo. Além disso, temos mais flexibilidade para trabalhar. A escrita é um processo muito íntimo, pessoal de cada um. Então para a sala de roteiro o home office funcionou muito bem. Agora para atuar é mais complicado, com os processos remotos de preparação. Atuação é uma coisa muito corporal, então foi bem difícil", acrescenta. 

Ao longo do mês de março, TELA VIVA celebra o Dia Internacional da Mulher e presta uma homenagem às mulheres de destaque no cenário audiovisual nacional. Acompanhe as próximas entrevistas e confira as anteriores já disponíveis no site.

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