Para especialistas, combate à pirataria passa por trabalho conjunto entre setor privado e autoridades públicas

A pirataria ataca de forma direta ou indireta toda a cadeia do audiovisual – prejudicando operadoras de TV por assinatura, programadoras detentoras de direitos de conteúdo e estúdios produtores, entre outros elos do ecossistema. Por se tratar de um problema complexo, não existe uma solução simples e única para resolver o problema. Mas é de consenso dos especialistas envolvidos nessas questões que uma união interna da indústria privada, que possibilite um trabalho unificado junto do poder público, é um dos caminhos mais plausíveis para trabalhar nesse combate. Esse foi um dos insights levantados no segundo painel do segundo dia do Brasil Streaming 2020 nesta sexta-feira, 17 de julho. O evento, que este ano se desenvolve de forma totalmente online, é promovido pelas publicações TELETIME e TELA VIVA.

Para abrir a discussão, alguns dos especialistas presentes apresentaram dados sobre a pirataria no Brasil e na América Latina. Ygor Valério, CEO da LtaHub, empresa de tecnologia e inteligência, informou que, de acordo com uma pesquisa realizada pela ABTA em conjunto com a Ipsos em 2019, 73 milhões de brasileiros consumiram conteúdos audiovisuais a partir de fontes piratas; seis entre dez afirmaram que consumiram tanto cinema quanto produtos de TV de fontes ilegais; 1,7 bilhão de filmes e episódios completos de séries foram assistidos via fontes ilegais; e 78% dos entrevistados afirmaram ser fácil ou muito fácil acessar um conteúdo pirata. "A batalha entre o pirata e o legítimo, que já é uma realidade no mercado da TV por assinatura há muitos anos, vai chegar com força no streaming também. Pirata, hoje, é um substituto perfeito ao lícito. A má qualidade de antigamente, que víamos nos CDs e DVDs, praticamente acabou. Por isso, o combate precisa ser elevado a um nível profissional. É o único jeito de não perdemos essa briga", apontou Valério.

Jonas Antunes, diretor da ABTA, trouxe novos dados para o debate. A entidade realizou duas rodadas de pesquisa cruzando a base de dados de duas fontes oficiais, Anatel e IBGE. Enquanto a pesquisa do IBGE identifica em quantos lares as pessoas dizem acessar TV por assinatura, a pesquisa da Anatel descobre quem o faz por meios legítimos. O resultado evidencia a presença de pirataria: o IBGE registrou que 22 milhões de lares tinham TV paga, enquanto a Anatel chegou ao número de 17,5 milhões. A partir daí, a entidade calcula as perdas – 4,2 milhões de lares na primeira rodada, que se refere ao ano de 2017, e 4,5 milhões de lares na segunda, referente a 2018. As perdas econômicas são de R$ 9,7 bilhões por ano, estima a entidade. Apesar do resultado alarmante, Antunes acredita que, no âmbito da indústria, existe uma evolução nesse enfrentamento, causada especialmente pela união do setor e interlocuções com associações – no entanto, os dados a partir de 2019, época em que ele diz ter iniciado esse trabalho coordenado, ainda não estão disponíveis. "Existe uma coordenação de trabalho privada hoje muito forte, mas ela é insuficiente se não contar com uma política de segurança pública correndo lado a lado. O setor privado e as autoridades precisam trabalhar em parceria, assumindo essa união como estratégia. Nesse sentido, podemos criar novas normativas, aumentar as ações policiais, apresentar campanhas à população… Não combater a pirataria coloca o mercado em risco de disrupção", declarou. 

O coordenador do combate à pirataria da Ancine, Eduardo Carneiro, concorda com Antunes no que diz respeito à integração de esforços para gerar efetividade no processo e conta um pouco sobre como a Agência vem atuando nesse sentido. Segundo Carneiro, o trabalho começou visando uma interlocução mais próxima com o mercado – a partir daí, criou-se um Fórum dentro da Ancine onde ficaram estabelecidos os fluxos de informações relacionadas à pirataria vindas do mercado para a própria Agência. Com base nessas informações, são feitas as operações policiais – como exemplo, ele cita a maior delas, a Operação 404, realizada em novembro do ano passado, que bloqueou 210 sites e realizou ações de busca e apreensão em 13 estados da Federação, e que terá uma nova fase em breve.

"Falando em streaming, sabemos que hoje a maior parte da pirataria é distribuída via internet – são as principais fontes de atuação. Por isso, a melhor forma de enfrentamento é por meio do bloqueio dos sites de forma administrativa. Para saber como fazer isso, estudamos exemplos do exterior: da Espanha, onde o Ministério da Cultura recebe denúncias vindas dos próprios detentores de direitos; da Inglaterra, onde uma unidade da polícia de Londres dedica-se exclusivamente à proteção intelectual; e de Portugal, que tem servido de inspiração principal. Lá, existe um acordo entre todos os envolvidos – detentores de direitos, órgãos governamentais e operadoras de telecom – para definir responsabilidades e como serão feitos esses bloqueios, que atuam tanto em conteúdos gravados quanto no ao vivo. No ao vivo, inclusive, eles efetuam bloqueios em 15 minutos, durante uma transmissão de partida de futebol, por exemplo", contou o especialista. A partir do exemplo analisado, a Ancine busca trazer esses mecanismos para a realidade brasileira – nesse sentido, ela entendeu que o caminho mais viável seria uma parceria com a Anatel e, então, um acordo foi firmado entre as agências. Na prática, funcionaria assim: a Ancine receberia denúncias dos detentores dos direitos de conteúdo e a Anatel determinaria os bloqueios. A proposta está sendo discutida nas agências e as procuradorias estão checando sua viabilidade – mas a expectativa para sua continuação é otimista, uma vez que, como relembra Carneiro, a própria Lei das Agências estimula essa interação no tratamento de questões. "Está na atribuição da Ancine combater a pirataria e defender os direitos autorais. Com a parceria com a Anatel, ganhamos a velocidade que o Judiciário ainda não tem de resposta. No caso do fluxo que desenhamos, uma ordem judicial não seria necessária. Não queremos substituir a atuação do Judiciário, e sim contar o dano. O trabalho policial, nesse escopo, permanece", esclarece o coordenador. Entre as atuações da Ancine, também estão projetos de capacitação de outros agentes, como a Polícia Rodoviária e a Receita Federal, para que eles saibam identificar esses equipamentos piratas. A Agência está construindo um manual de procedimentos para identificação e apreensão desses equipamentos, que inclui ainda video-aulas para policiais rodoviários.

Danilo Almeida, head de integração de sistemas da Nagra, acredita que pelo lado tecnológico, a questão da pirataria tem solução – mas, novamente, reforçando que não se trata de algo simples. Almeida acrescenta um outro dado interessante: em mais de 70% dos casos de análise que a Nagra faz em relação à pirataria de IPTVs, a fonte de onde tiram aquele conteúdo para piratear é lícita, isto é, vem de uma assinatura válida de determinado serviço, o que comprova que a incidência de pessoas quebrando sistemas para piratear não é maioria. Por isso, o executivo levanta uma outra iniciativa que considera fundamental no trabalho de combate à pirataria: ferramentas de tagueamento e water marks nos conteúdos. "A maior parte do conteúdo sai da fonte com criptografia ponta a ponta, mas em algum momento ela é quebrada – infelizmente, com ajuda da tecnologia, é fácil cortar isso. As marcas d'água, por exemplo, são eficazes – permitem que o detentor do conteúdo saiba exatamente de onde isso vazou para desativar aquela conta. É claro que os piratas têm muitas contas, mas cortar uma delas já causa um impacto no negócio", afirma. Almeida ainda reforça que o conteúdo pode ser hackeado em diversas fases da produção e distribuição – e que, por isso, quem deve usar a ferramenta de proteção é quem está mais interessado em proteger aquele material.

Apresentando um ponto de vista de operador, Ana Maria Sousa, da Sky, defende que o conteúdo é protegido na fonte, sim: "Operadores investem em tecnologia de criptografia. O conteúdo sai da fonte protegido – mas, no meio do caminho, existem diversas maneiras de alguém se apropriar daquilo. O trabalho é criar mecanismos de defesa e atuar nesse combate". Sousa ainda diz que todo participante que esteja ligado de alguma forma a essa questão – como plataformas, meios de pagamento, programadoras e operadoras – precisa olhar para a pirataria não só como um problema do setor de Pay TV ou do cinema, pois ela afeta diversos outros segmentos. A executiva também faz um chamado: "Não adianta, por exemplo, a Sky fazer uma water mark se as outras operadoras não fizerem. O pirata é esperto – se ele perder o meu sinal, vai rapidamente migrar para outra operadora. É uma missão conjunta. Se todos não fizerem sua parte, o problema continuará se propagando".

O especialista Ygor Valério pontua que não existe algo específico, ou só de uma área, que contribua para o aumento da pirataria. Mas faz uma ressalva: "É importante destacar uma questão, que inclusive é fenômeno mundial, que é a revisão do papel do intermediário de internet na contenção do crime online. Nos últimos 20 anos, esses intermediários se desenvolveram dentro de uma sistemática criada nos Estados Unidos que funciona como um porto-seguro para eles. Esse cenário tira a responsabilidade do que passa pela rede do intermediário dessa equação. A situação que temos hoje é, em certa medida, produto desse modelo, que foi importante no nascimento da internet, mas tende a ser revisto mundialmente". Valério relembra que, no ano passado, houve uma aprovação da nova direita europeia de direitos do autor, em uma disputa entre intermediários de internet e titulares de direito que resultou em uma revisão da mecânica e colocou os intermediários como responsáveis pelos conteúdos armazenados nas plataformas. "O business do YouTube, por exemplo, é em certa medida construído em cima desse porto-seguro", exemplifica. As fake news, por exemplo, também frutificaram nesse cenário. Para Valério, o caminho seria existir um incentivo  governamental e legislativo a um trabalho voluntário de parceria entre titulares de direito e intermediários de internet, em alguma "auto-regulação regulada".

Questão cultural?

Quando falamos em pirataria, é comum logo justificarem a prática como uma questão cultural do brasileiro. Mas os especialistas explicam que não é bem assim. Para Valério, a questão cultural existe, mas não é o centro do problema: "Não dá pra achar que vamos mudar a cultura da pessoa, que o usuário da pirataria vai deixar de achar que aquilo é errado. Com esse discurso, a gente não sai do lugar". Carneiro, por sua vez, declara: "Pirataria é crime e não existe crime aceitável. Não é um pequeno delito. Existe uma percepção das pessoas de que não estão fazendo mal – mas a pirataria alimenta o crime organizado e está entre seus principais financiadores. E esses crimes, no fim, são sentidos por toda a população. Não é só perda de receita pra empresas; É problema de segurança pública".

Ana Maria Sousa traz outro fator à conversa: o lado financeiro. "A indústria de TV por assinatura é extremamente regulada, com definições exatas do que pode ser feito. Então temos que seguir algumas regras – dentro disso, a indústria é criativa no sentido de ofertar alguns outros modelos na medida em que cria diferentes pacotes e alternativas, como temos no pré-pago, por exemplo. Num modelo legal, preciso pagar direitos autorais para os programadores. Boa parte do nosso preço está embutido nesse valor, além dos impostos, claro. E o pirata não precisa pagar por nada disso", pontua.

Por fim, Valério deixa a reflexão: "As relações de cooperação na indústria estão melhores do que jamais foram antes mas piores do que poderiam ser. A gente sabe exatamente o que pode melhorar e como pode melhorar. Não queremos apontar dedo, e sim mostrar aos provedores o que aprendemos com base em nossas experiências".

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