Nesta quarta-feira, dia 20 de março, o Lanterna Mágica – Festival Internacional de Animação, que acontece em Goiânia (GO) até o próximo domingo, 24, abriu oficialmente suas atividades de mercado com o Lanterna Film Market. Trata-se de um eixo inédito na programação do Festival – que já está em sua sexta edição – que reunirá estudos de caso, debates e atividades de formação.
A mesa de abertura do Lanterna Film Market trouxe Kalor Pacheco, co-criadora e roteirista da animação "Bia Desenha", para um estudo de caso do projeto. Ela é também uma das curadoras da Mostra Africana do ANIMAGE – Festival Internacional de Animação de Pernambuco – mostra que, neste ano, inclusive, também estará no Lanterna Mágica. Pacheco falou sobre o processo de criação do projeto, suas características principais e as janelas de distribuição.
"Bia Desenha" apresenta a realidade de crianças suburbanas, que vivem muito próximas à natureza, e o aprendizado construído através de provocações intergeracionais expressas nas brincadeiras cotidianas. É uma animação 2D cut-out digital, que tem como público-alvo crianças de quatro a seis anos, e conta com 13 episódios de sete minutos cada em sua primeira temporada. A série tem direção de Neco Tabosa – que assina os roteiros e a criação ao lado de Kalor Pacheco -, direção de arte de Raul Souza e produção de Nara Aragão, da Carnaval Filmes.
Na trama, Bia, cinco anos, e Raul, de seis, são primos. Os dois moram em casas ao redor do mesmo quintal. Seus encontros depois da escola para brincar e desenhar se transformam sempre em aventuras. A série estimula a comunicação e o afeto em uma família pouco convencional, investigando os temas que passam pela cabeça das crianças enquanto elas se expressam com letras, traços e cores. Tendo como referência bairros suburbanos de cidades às margens da Região Metropolitana de Recife, o lugar onde vivem os personagens fica perto do final do terminal de ônibus, onde acaba o asfalto, beirando uma mata.
"O ambiente em que cresci – em Camaragibe, Pernambuco – está muito presente em 'Bia Desenha'. Os personagens são negros, como eu, o cenário principal é parecido com a minha residência e práticas da minha família estão ali também. É uma animação antirracista. Eu cresci num cenário da TV brasileira em que os principais programas não tinham nada como eu, como os meus, como os meus vizinhos. Ou seja, um cenário de falta de representação. Por isso levamos como principais referências cenários reais do subúrbio do Nordeste – são casas de tijolos aparentes, ladeiras. Elementos que a TV nos anos 90 não mostrava. Além do sotaque e os dialetos, que eu também não costumava ouvir na televisão", disse a roteirista.
Para além das referências específicas do Nordeste, a série busca reforçar o Brasil de modo geral. "Crescemos vendo animações de outros países – com crianças que, no inverno, brincam de fazer anjos na neve. Em 'Bia Desenha', a personagem principal aparece muitas vezes só de calcinha. Porque aqui é muito calor mesmo", exemplificou Pacheco. A cultura negra também é bastante presente. "Buscamos essa representação, levando para as séries os saberes que consistem nas culturas tradicionais". Por exemplo: o uso de plantas para cuidar dos cabelos em vez de produtos industrializados.
O projeto foi contemplado na Chamada Pública do FSA para TVs Públicas, num edital de produção para a região Nordeste, em 2015. O resultado foi divulgado em julho de 2016. Eram duas linhas de criação possíveis: a linha A, de desobediência poética, na qual "Bia Desenha" foi contemplado, e a linha B, de fatos históricos, que contemplou outro estúdio de Pernambuco. A jornada de produção foi extensa, e a animação estreou na TV Brasil em 2019. Posteriormente, foi exibida ainda na TV Cultura, TV Pernambuco e Canal Futura, entre outras TVs públicas, e passou a integrar o catálogo da TodesPlay, plataforma de streaming da APAN (Associação de Profissionais do Audiovisual Negro), onde se tornou o produto audiovisual mais visto da plataforma. Alguns episódios estão disponíveis no YouTube – inclusive com recursos de audiodescrição, Libras e LSE.
Em sua apresentação, a roteirista, que tem formação em jornalismo e também trabalha com documentários com teor de performatividade, ainda destacou as possibilidades de trabalho com "Bia Desenha" em sala de aula. A partir dos episódios, os alunos podem, por exemplo, se envolver em atividades de produções artísticas e conversar sobre questões que a série traz. "Através das brincadeiras e da imaginação, os personagens falam sobre respeito aos mais velhos, a importância de pedir desculpas e até sobre história da arte", citou.
Pacheco e Tabosa já trabalham em um próximo projeto de série em parceria.