Atores e atrizes se preocupam com avanço da IA no audiovisual, mas apontam demandas mais urgentes

(Foto: Pixabay)

Inteligência Artificial é o assunto de momento. As possibilidades que as ferramentas de IA trazem em termos de otimização do trabalho e aumento da produtividade estão sendo exploradas em diversos segmentos – no audiovisual, não seria diferente. Produtoras – especialmente aquelas especializadas em pós-produção – já testam algumas novas tecnologias que visam reduzir custos, tempo de trabalho e etapas do processo. 

Apesar do tema não ser novidade, seus desdobramentos práticas são mais recentes e envolvem mais perguntas do que respostas – especialmente porque ainda não há um arcabouço legal e até social em torno do uso da inteligência artificial. Há pontos essenciais, tais como direitos autorais e proteção de dados, que demandam análises no âmbito jurídico. Lá fora, o tema foi um dos tópicos mais relevantes da greve dos roteiristas no ano passado. O acordo final entre a classe e os estúdios incluiu uma série de regras protetivas para o uso de inteligência artificial nos roteiros, como por exemplo: os textos literários não podem ser escritos por IA, assim como qualquer material gerado por IA não pode ser usado para tirar o crédito ou direitos de um escritor; e nenhuma empresa pode exigir que um redator use software de IA ao realizar serviços de redação; entre outras coisas. 

Roteiristas e dubladores iniciaram movimentos 

No Brasil, as entidades representativas ABRA (Associação Brasileira de Autores Roteiristas), Gedar (Gestão de Direitos de Autores Roteiristas) e Autorais (Associação dos Autores Roteiristas da Bahia) divulgaram uma carta aberta com recomendações sobre o uso da IA para roteiros. Entre as diretrizes que devem ser observadas, as entidades apontam que os autores devem ser informados sobre o uso de suas criações pela IA, inclusive para treinamento dos sistemas, e permitir ou não o uso; o desenvolvimento de projetos audiovisuais não pode prescindir da presença de roteiristas em nenhuma de suas fases; o material escrito gerado por IA não deve ser tratado como criação autoral; e o uso de ferramentas de IA deve ser opção do roteirista, não obrigação.

Os dubladores também estão preocupados com o avanço da IA e começaram um movimento pela regulação do seu uso em jogos, filmes, séries e outras produções audiovisuais. A preocupação dos profissionais é que os sistemas da IA possam substituir os artistas, fazendo imitações de vozes e partir de padrões identificados e registrados na Internet. Uma petição liderada pela United Voice Artists, grupo global de associações de dublagem, já reuniu mais de 50 mil assinaturas para impedir a substituição de dubladores humanos por robôs. Por aqui, o movimento "Dublagem Viva" pede que sejam determinadas regras para "equilibrar os avanços tecnológicos com a preservação de empregos e garantir a qualidade da dublagem". A campanha destaca que é função dos artistas dar autenticidade à versão dublada das produções e adaptar os personagens à cultura e ao contexto de cada país.

Atores e atrizes também estariam ameaçados  

Nota-se que os grandes receios do uso da IA no audiovisual vêm principalmente por parte das classes artísticas. Uma pesquisa do NRG (National Research Group) compartilhada com exclusividade com o veículo IndieWire identificou que 42% dos profissionais de produção de cinema e televisão dizem que a IA vai "prejudicar as pessoas" em suas áreas. Além disso, 74% afirmaram estarem preocupados com as questões de propriedade intelectual relacionadas às novas ferramentas de IA e 85% concordam que há necessidade de novas leis para cuidar dos direitos do autor nesse novo contexto. 

Atores e atrizes também estão atentos à questão. Victor Drummond, professor de Direito, advogado e presidente-executivo da Interartis Brasil – associação de gestão coletiva do setor audiovisual formada por artistas brasileiros que atuam como intérpretes de televisão, vídeo ou cinema – declarou em entrevista exclusiva para TELA VIVA: "O uso das ferramentas de inteligência artificial não pode ser visto, de forma absoluta, como definitivamente pernicioso. Mas, por outro lado, o uso desenfreado e descontrolado pode nos atingir em muitos ambientes, entre eles, no universo do direito e da ética. No caso do setor audiovisual, os profissionais da criação podem – e são – duramente atingidos pela verdadeira revolução tecnológica da IA generativa. E, para muito além de meras discussões corporativistas, que também importam, e muito, precisamos entender que futuro queremos para as artes. Queremos que os criadores não sejam mais criadores? É importante discutir de que forma podemos proteger os criadores não somente pela manutenção dos seus trabalhos, mas também para que tenhamos uma arte humanizada. Acabar com o trabalho dos dubladores, roteiristas, atores, diretores, locutores e tantos outros faz bem à sociedade? Em nome de que isso é proposto? De um economia de escala? Acho que esses são pontos principais a serem compreendidos imediatamente". 

Drummond prosseguiu: "É importante entender qual o fetiche dos grandes estúdios em querer economizar a todo custo com o pagamento dos setores artísticos. Essas empresas já não são suficientemente ricas e poderosas? O artista está vulnerável como nunca esteve antes. Há discussões e conflitos com empresas de streaming e de radiodifusão que não pretendem pagar os chamados direitos de remuneração como se isso impactasse as suas contas, o que é uma fantasia". E concluiu: "Enquanto os criadores não puderem participar do processo de criação de leis e tiverem que aceitar contratos de adesão, nunca poderão se posicionar de forma contundente. A luta é coletiva e permanente e as negociações são altamente injustas e desequilibradas". 

Como os profissionais veem a questão 

Filipe Bragança (Foto: Jorge Bispo)

O ator Filipe Bragança (novela "Elas por Elas", séries "Betinho: No Fio da Navalha" e "Justiça 2", longa "Meu Sangue Ferve Por Você") entende que o processo de evolução da tecnologia é natural e não pode ser evitado. No entanto, ele se diz preocupado e incomodado com a presença atual da IA por diversas razões. "Enquanto ator e profissional do audiovisual brasileiro, me preocupo com o futuro do nosso mercado diante dessa realidade – não só pelos atores, mas por todos os outros profissionais que trabalham nesse meio. Obviamente, as criações geradas por IA são mais baratas e assertivas, portanto as produções podem optar por essa alternativa gerando desemprego e desvalorizando o trabalho dos artistas", analisou. "Eu amo o que é criado por pessoas, pensado por pessoas e principalmente imaginado por pessoas. O que me fascina em todas as linguagens de contação de história é o estímulo à imaginação e à transmissão de conhecimento humano, e a IA faz de todas essas possíveis criações artificiais. E eu quero assistir algo real, pessoas reais e espero que o resto do público também. E ainda me preocupo enquanto cidadão, já que a IA é uma potencial arma política muito poderosa", ressaltou. 

Ana Hikari (Foto: Ana Vohs)

"Acho impossível fugir do avanço tecnológico e sei que se não tomarmos essa discussão para nós e pensarmos nas regras que queremos que sejam cumpridas, a exploração da nossa imagem vai ocorrer de um jeito ou de outro. O importante é participar da discussão e deixar bem explícito quais são nossos limites enquanto artistas – sejam dubladores, diretores ou atores", pontuou a atriz Ana Hikari ("As Five", "Família é Tudo"). "Acredito muito em desenvolvimento artístico se apropriando de tecnologia, mas, para isso, a autonomia artística, a noção de consentimento e uma compensação justa têm de ser garantidos para os artistas envolvidos. Compreendo o conceito de IA, mas reforço que não funciona de maneira 100% independente, sem a coordenação funcional por um ser humano. E, na minha opinião, é aí que entra o fazer e pensar artístico", completou. 

"Mas não concordo com a substituição total de pessoas por inteligência artificial. Essa ação, inclusive, seria fruto de uma lógica absurdamente capitalista que quer baratear mão de obra e substituir o capital humano em prol de um lucro maior. Não acho essa lógica eficiente, de fato, e acredito que os artistas têm de fazer exatamente o que está começando a acontecer fora do Brasil: se reunir em torno dessas discussões e reivindicar nossos direitos, inclusive através de greves, se for necessário", enfatizou Hikari. 

Marina Provenzzano (longa "Aumenta que é Rock 'n Roll", séries "Bom Dia, Verônica", "Suíte Magnólia") acredita que essa questão da IA nas artes audiovisuais diz muito sobre a relação dos espectadores com os produtos. "Eu não consigo imaginar um robô sendo capaz de entregar uma grande atuação. Eu imagino que uma atriz criada por IA seja uma soma de inúmeros registros de outras atrizes reais, que fizeram escolhas reais no momento preciso em que estavam em ação. Isso me leva para a pergunta: o que um espectador considera uma grande atuação? Eu, como espectadora, considero uma grande atuação as escolhas menos óbvias, algo que desloca o meu olhar e me surpreende, algo que revela uma parte humana nem sempre vista, que me toca e com a qual me identifico. Mas, e para o outro? Um simulacro de uma atriz, um copia e cola, um algoritmo, é capaz de tocar uma pessoa da mesma forma que um ser humano que estudou e estuda e está em constante pesquisa do seu ofício?", questionou. 

Marina Provenzzano (Foto: Catarina Ribeiro)

Possíveis caminhos e o uso "saudável" da tecnologia 

A atriz Rayssa Bratillieri (novela "Elas por Elas", filmes "Apaixonada" e "Amor em Hong Kong", série "O Amor da Minha Vida") demonstra preocupação de modo geral com o avanço da IA – em relação à sua profissão e também com o lado social e político da questão, que envolve vídeos falsos, por exemplo. "Perdermos o controle da verdade se limites não forem impostos", alertou. "Em relação ao audiovisual, é necessário conversarmos sobre a importância da arte como conexão do ser humano com algo mais profundo e com sua criatividade. Acredito que essa tecnologia – e outras que estão por vir – já é um passo tomado e que não tem mais volta. Mas a possível substituição do nosso pensamento e da nossa criatividade me faz questionar qual será nossa função daqui a um tempo. Pensando em todas as camadas que esse assunto aborda, acredito que, com isso tudo, o que é real e que contém experiências humanas, como o teatro, vá ganhar valor. Estaremos – espero que sim – mais sedentos por conexões humanas", opinou. 

Rayssa Bratillieri (Foto: Anthony Garcia)

Para Bratillieri, não se trata mais de discutir se é aceitável ou não. "E nem é sobre minha opinião, já que a tecnologia cresce desenfreadamente e estamos, nós mesmos, trocando nosso trabalho por inteligências. Não é o mundo que eu acredito, mas não tem mais como parar isso – seria querer agora tirar a internet de nossas vidas", avaliou. Diante desse cenário, ela sugere caminhos: "Talvez uma solução seja impormos que, quando qualquer imagem feita por IA estiver num filme, seja uma persona ou um vídeo, uma tag avisando que aquilo foi criado com IA seja inclusa. Como existe no Instagram avisando que foi usado filtro. Uma marca d'água. Assim vamos separando por nicho o que é ou não real. E em festivais de cinema, premiações para filmes gravados em IA separadas de tudo o que for feito com o real". 

O ator Gabriel Godoy (séries "Impuros", "O Negócio"; filmes "Tire 5 Cartas", "O Sequestro do Voo 375", "Doce Família"; novela "Família é Tudo"), que ao lado do ator Pablo Sanábio e do diretor e roteirista Vinicius Vasconcelos criou a produtora de conteúdo Prelúdio, acha o debate em torno da IA "complexo e novo", ao mesmo tempo em que acredita que estamos falando de uma realidade que está bem próxima. "Quando escuto que uma máquina vai fazer o trabalho de um profissional que depende disso para viver, que estudou, se formou, tem isso como ofício e que agora poderá ser automaticamente descartado, me soa extremamente triste e perigoso", afirmou. Ainda assim, ele enxerga alguns possíveis usos "saudáveis" dessas tecnologias: "Um diretor me mostrou como é possível criar clipes e teasers com IA para vender uma ideia, apresentar um projeto para um canal ou uma plataforma de streaming, por exemplo, de forma a ilustrar como essa ideia funciona. Isso me parece interessante, porque tentar vender um projeto é complexo. Então ter um teaser que vá poupar um gasto – enquanto é só uma ideia, normalmente não tem verba ainda – pode ser bom". 

Bragança acrescentou: "Produtores e diretores podem usar a IA para a realização de pesquisas sobre determinados assuntos, apresentação e idealização de projetos, criação de conceitos visuais específicos para um personagem ou espaço – o que me parece mais vantajoso no caso da animação. São coisas que, depois, seriam continuadas pelos profissionais da área. No entanto, para o trabalho dos atores, ainda não consigo enxergar nenhum benefício". 

Nesse sentido, o advogado Victor Drummond destacou que as ferramentas devem auxiliar a todos, e não somente a indústria: "Se os criadores podem criar de uma melhor forma, isso pode ser altamente positivo, mas se os beneficiários das ferramentas forem somente as empresas e o sistema capitalista, não somente os trabalhadores da cultura, como também a sociedade saem altamente feridos". 

Grande volume de demandas gera outras prioridades 

Gabriel Godoy (Foto: Caio Oviedo)

Assim como acontece em outras áreas do audiovisual – como produção, roteiro e técnica – os atores também trazem uma série de demandas relacionadas a melhores condições de trabalho e valorização de seus ofícios. "O mercado do Brasil tem diversas feridas que precisam ser resolvidas, especialmente o modo injusto com quem assinamos contratos hoje e entregamos nossa alma para os streamings e as emissoras e a defesa pelos nossos direitos de imagem. Temos que organizar nossa luta a escolher pelo que vamos lutar. Até para termos foco. Senão, fica muito aberto. É uma sensação que tenho às vezes: nossa luta fica um pouco perdida porque não focamos. Justamente porque são muitas questões para resolver", explicou Godoy. 

Hikari concordou: "O Brasil possui muita potência tecnológica e audiovisual e já está entrando nessa discussão sobre IA no mercado. O alerta fica para os artistas se adiantarem e se informarem sobre o assunto, para não ficarmos reféns das regras ditadas pelas produtoras e emissoras. Vejo a classe artística muito desunida em vários sentidos e, se não nos reunirmos para debater esse assunto, podemos ter nossas imagens e corpos muito explorados, além de nossos direitos não assegurados". 

Bragança também acredita que o audiovisual brasileiro tenha outras questões mais urgentes a serem debatidas antes da IA. "Não adianta falarmos sobre IA se o nosso mercado e nossa classe artística não forem devidamente valorizados e estimulados. A regulamentação do streaming no Brasil é um debate mais importante agora, assim como o fortalecimento da nossa comunidade artística, que ainda é muito desorganizada e não conseguiria se posicionar efetivamente em relação a IA, como foi o caso da greve no EUA recentemente", pontuou o ator. 

Por fim, o advogado e presidente-executivo da Interartis Brasil assume que a crise que se instituiu no setor audiovisual é universal, com os criadores cada vez mais mal remunerados, sem espaço negocial e submetidos às práticas das grandes empresas para poderem trabalhar. "O movimento de greve nos EUA mostrou o tamanho da vulnerabilidades dos criadores em geral, em especial atores e roteiristas. Nesse sentido, é fundamental que os artistas façam uso da sua união de forma contundente", defendeu. "É preciso que os criadores tomem como coletivas as mazelas individuais. E isso tudo deve ser alardeado a todo o momento, em todos os meios. E a sociedade precisa ser mais empática e abraçar a luta dos criadores. É com arte que se combate às mazelas e dores do mundo e que sobrevivemos melhor num mundo tão difícil, complexo e injusto. A luta dos atores, roteiristas, diretores, dubladores e locutores precisa ser a luta de todos", concluiu Drummond. 

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